Monsenhor de Gibergues
A Simplicidade Segundo o Evangelho
Instruções para às senhoras e às jovens
A
simplicidade é a marca e o sinal distintivo do Evangelho, pois é o traço
dominante e o próprio caráter do Salvador1.
Desde
o primeiro instante de vida até exalar o último suspiro na cruz, Jesus nunca
deixou de contemplar o Pai e de agir para Deus. Tudo o que o Evangelho nos
relata, todas as palavras, todas as obras de Jesus disto dão testemunho.
Afirma
São Paulo que Cristo, ao entrar no mundo, exclamou: "Eis que venho, meu
Pai, para fazer a vossa vontade... imprimindo as minhas leis nos seus
corações."2Seu primeiro pensamento foi, portanto, para Deus.
Usou da liberdade, em primeiro lugar, para submeter-Se à vontade de Deus e
entregar-Se por completo a Ele.
E
nunca mais Jesus desviou-Se dessa atitude, por um instante sequer. Quando, aos
doze anos, deixara Maria e José para ficar no templo, ao encontrá-los,
novamente, aflitos, só teve uma palavra para lhes explicar a razão da Sua
conduta: "Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas que são de meu Pai?”3
Em
Nazaré, que faz Ele durante trinta anos, senão permanecer na presença de Deus,
trabalhar, obedecer, humilhar-Se, com a finalidade de agradar a Deus e, enfim,
de viver para Ele?
Se,
aos trinta anos, deixa Sua mãe para ir ao deserto e lá preparar Seu ministério
público, “é o Espírito Santo que o conduz.”4
Quando o demônio O tenta, é sempre com o nome de Deus que o repele:
"Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de
Deus. Não tentarás o Senhor teu Deus... e a Ele só servirás."5
No
Jordão, o Espírito de Deus, em forma de pomba, desce visivelmente sobre Jesus.
Quando
pela primeira vez entra na Sinagoga, abre o livro das Escrituras no seguinte
passo: "O espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu.”6
À
samaritana que o interroga sobre o verdadeiro culto, diz como primeira
resposta: "Os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e
verdade."7
E,
logo depois, diz aos apóstolos: "A minha comida é fazer a vontade de meu
Pai que me enviou...”8
Às perguntas que Lhe fazem, às ciladas que Lhe preparam, a todas as
ofensas que Lhe dirigem, responde sempre falando do Pai, da desonra que causam
a Deus, da injúria que Lhe fazem, do amor, da confiança, da submissão que Lhe
devem. Resume toda a religião, toda a lei, toda a moral neste único preceito:
"Amareis a Deus de todo o vosso coração."9
Haverá,
no mundo, ensinamento, filosofia ou doutrina mais simples que a pregação do
Salvador que proíbe servir a dois senhores e tudo reduz ao amor de Deus?
Não
será o zelo pela simplicidade a razão dos ataques e ameaças com que invectiva
os fariseus? Não estará condenando neles a hipocrisia, a astúcia, a mentira, a
duplicidade, todas as vezes que lhes repete: "Ai de vós!"10
"Vós
dourais as bordas da taça, mas deixais o fundo cheio de amargura. - Estais
sentados na cadeira de Moisés, mas não fazeis o que ele diz. - Vós
sobrecarregais a viúva e o órfão com fardos que vós mesmos não podeis carregar.
- Vós soltais o boi e o jumento, em dia de sábado, para conduzi-los ao
bebedouro, e não quereis que eu cure esta mulher de sua enfermidade. - Vós sois
sepulcros caiados: por dentro, estão cheios de vermes e de imundícies...”11
Todas
as vezes que condena os fariseus é pela hipocrisia e pela falta de
simplicidade. Os fariseus queriam agradar aos homens e não a Deus: é isto ó que
faz explodir contra eles a cólera de Jesus.
O
amor que tem às criancinhas provém ainda da simplicidade destas: é a
simplicidade que nos apresenta como modelo e condição para entrar no céu.
A
simplicidade de Jesus passa ao coração dos apóstolos. É o encantamento
todo-poderoso que os atraí, a força irresistível que os arrasta.
''Mestre,
onde morais? perguntam-Lhe. Ele responde: "Vinde e vede...”12,
e logo vêm e prende-se a Ele."
"Segui-me",
disse-Lhe ainda. E sem hesitar deixam ocupações, redes, trabalhos, pais, tudo
enfim, e O seguem.13
Até
na linguagem exige simplicidade absoluta: Seja o vosso falar: sim, sim; não,
não; porque tudo o que passa disto vem do mal."14
Quanto
a Ele, leva a simplicidade ao mais alto grau; fala como pensa e pensa como o
Pai: "Como escuto, julgo." Dentro de Si escuta a palavra que Deus Lhe
diz, o julgamento que Deus faz, e pronuncia a mesma palavra e faz o mesmo
julgamento.
Entre
Ele e o Pai, existe conformidade constante e absoluta de pensamentos, de
sentimentos e de vontade, enfim, a união perfeita decoração e de amor que
constitui o ideal da simplicidade.
O
espírito do homem, em Jesus, é de tal forma submisso e dócil às inspirações do
espírito de Deus que, verdadeiramente, Jesus só tem um espírito, de acordo com
a palavra do Apóstolo: "Aquele que se une ao Senhor tem um mesmo espírito
com Ele."15
Durante
a Paixão, a simplicidade de Jesus irradia-se com maior brilho.
É
simples em Getsêmani. Chegou a Sua hora, o Pai falou, isto é o
bastante. Não procura esconder-Se, fugir, ou defender-Se. Vai diretamente ao
encontro da dor e da morte.
Sua
natureza humana tem medo, treme, agita-Se e pede graça. Ele a vence e não
receia um instante: "Foi para isto que vim!"
Poderia
pedir ao Pai que Lhe enviasse Anjos para libertá-lO. Mas nem pensa nisso.
Deseja apenas obedecer e executar os soberanos desígnios.
É
simples diante dos tribunais, nas atitudes, palavras e respostas. É humilde e
digno, modesto e firme. Não tem a dureza estóica do rosto e do olhar com que o
representaram alguns pintores.
É
suave a Sua majestade, e a bondade transparece em Sua firmeza. Nele o homem se
atenua e o divino é realçado. Esquece-se para só ver a Deus. Sabe que nada
acontecerá sem a vontade do Pai; que Seus juízes e Seus carrascos não têm outro
poder além daquele que Deus lhes quer dar.16
Eis
por que quase sempre se conserva silencioso, sem mesmo procurar defender-Se,
entregando Sua causa só a Deus.
É
simples no Calvário. Não tem amargura, não faz repreensão alguma àqueles que O
crucificam, ou à turba que O ultraja. Nenhuma consideração pessoal, nenhuma
queixa. Nada mais vê além dos pecadores e de Deus.
Aos
pecadores perdoa, promete-lhes o Paraíso, dá-lhes a própria Mãe e
manifesta-lhes a sede que tem de suas almas.
Ao
Pai, até no meio do mais cruel abandono, da mais horrível agonia, só fala em
submissão e confiança.
Ó
meu Salvador, que adorável simplicidade a Vossa!
Que
unidade em Vossos pensamentos, sentimentos, trabalhos, dores, virtudes e
orações! Tudo para as almas e para Deus, E nossas almas, é ainda para Deus que
as salvais: para que o nome de Deus seja santificado por elas, para que Seu
reino chegue e para que Sua vontade se cumpra. As almas são a messe e a messe é
para o Senhor.
De
modo que "uma só coisa é necessária", isto é: glorificar Deus nEle
mesmo e glorificá-lO pelas almas e nas almas. Contemplar sempre a Deus,
trabalhar sempre para Deus, atribuir a Deus tudo o que se faz, ver unicamente a
Deus na criatura e só ver a criatura em Deus: eis a finalidade de Vossa vida, ó
Jesus, e eis também a perfeita simplicidade!
Ó
simplicidade, como és grande e bela! Mas como és mais bela, mais atraente
ainda, como és santa e divina; no coração e na alma de Jesus!
Ó
simplicidade, és verdadeiramente o espírito de Jesus, o espírito de Deus na
criatura!
Ó
simplicidade, sê meu constante exercício, minha contínua inspiração, minha alma
e minha vida! Que por ti eu morra a tudo o que pertence à criatura! Que por ti
eu viva para tudo o que é de Deus!
Que
por ti tudo o que é humano desapareça em mim e só o que é divino subsista! Ou
pelo menos, embora o humano em mim continue, pois que é a minha condição, que
se transforme em divino, como em Jesus! Que pela simplicidade, contemplando e
procurando a Deus em todas as coisas, O encontre, a Ele me prenda e nEle
permaneça para sempre!
____________
1. É
conhecido o célebre passo em que Jean-Jacques Rousseau num momento de
sinceridade, exaltou a “simplicidade do Evangelho».
2.
Ep. Hebr., X, 7-16.
3.
S. Luc., II, 49.
4.
S. Mateus IV, 1.
5.
S. Mateus IV, 3-7-10.
6.
S. Luc., IV, 18.
7.
S. João IV, 23.
8.
S. João IV, 34.
9.
S. Marcos XlI, 30.
10. São
Mateus XIX, 21.
11. S.
Mat., XXIII, 13-14, e passim.
12. S.
Luc., XlV, 5, XI, 43. - S. Mat., XXIII, 4-6-13-27.
13. S. João I, 38-39.
Abandonando as redes e o pai, eles o seguiram. (S. Mat., IV, 22) Eis que nós
abandonamos tudo para vos seguirmos. (S. Mat., XIX, 27).
14. Levantando-se
o seguiu. (S. Mat., IX, 9).
15. S.
Mat., V, 37.
16. "Não
terias poder nenhum sobre mim, se te não fosse dado do alto", disse a
Pilatos (S. João XIX, 11).
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