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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Excesso divino, medida divina

Por um cartuxo anônimo
Intimidade com Deus

            O que nenhum homem disse nem podia dizer como homem, foi-nos revelado pelo Filho, transpondo por nós o limiar do inefável e dando-nos a conhecer, não o eco, na própria palavra do Pai, a realidade da vida interior de Deus. No cimo da história do mundo, quando o inferno inteiro se desencadeia para precipitar na catástrofe o drama da criação, enquanto as forças satânicas lançadas ao assalto do céu procuram afogar no ódio a obra à misericórdia, vemos nós triunfar o amor. Para ganhar o objeto desta luta- o coração humano- Deus ultrapassa todos os limites e, em certa medida, rompe a medida do nosso pensamento. «Antes do dia da festa da Páscoa, sabendo Jesus que era chegada a sua hora, de passar deste mundo ao Pai, tendo amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim» (João, XIII, 1).

            Um dos íntimos de Cristo recusa-lhe o seu coração e Satã entra nele; um apóstolo afasta-se de Deus e fica cego. Sai de noite - a pior de todas as noites - para entregar o Filho do Homem ao ódio dos seus inimigos, aos suplícios e à morte. Mas o amor triunfa e a sua luz brilha como nunca, nesta hora de trevas. «Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida: ninguém vai ao Pai senão por mim. Se me conhecêsseis, também certamente conheceríeis meu Pai; mas conhecê-lo-eis bem cedo. Acreditai nas minhas palavras: meu Pai está em mim e eu estou nele» (João, XIV, 6-7 e 11).

            Este caminho que o excesso do amor nos mostra é o nosso: o homem, errante e cativo na terra, só no absoluto encontra o seu lar. Ouçamos a verdadeira sabedoria da boca do divino Mestre: ela convém-nos precisamente porque é suprema; penetremos com ela até ao fundo da verdade: «Aquele que retém os meus mandamentos e os guarda, esse é que me ama: e aquele que me ama será amado por meu Pai; e eu o amarei e me manifestarei a ele» (João, XIV, 21).

            A alma que acede ao convite do perfeito amor torna-se misteriosamente parecida com ele. A semelhança com Deus põe-na em relação imediata com a Santíssima Trindade. A sua participação na vida divina, no conhecimento e na caridade, ultrapassa infinitamente as fronteiras das nossas esperanças, cresce com a infusão constante da graça, até que o Pai encontra não só a imagem do Seu Filho reproduzida nessa alma mas até mesmo o Seu Filho vivo. «O Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus. E, se somos filhos, somos também herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; mas isto se sofrermos com eles, para ser com eles glorificados» (Rom., VIII, 16-17).


            Jesus fortifica-nos e ilumina-nos para não pararmos no nosso caminho e para que o nosso amor não deixe de crescer. Na verdade, tomamos parte no conhecimento de Deus, na caridade com que Ele se ama. É por isso que o Apóstolo se dirige «aos que conosco tiveram por sorte a mesma fé, pela justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo,... a quem foram dadas tão grandes e preciosas promessas, a fim de que se tornem participantes da natureza divina, fugindo da corrupção da concupiscência que há no mundo» (II Pedro, I, 1-4). A glória armou a sua tenda no meio de nós e convida-nos, com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, à mais íntima familiaridade. «Para que possais compreender qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade do amor de Cristo para com os homens; e conhecer também aquele amor de Cristo, que excede toda a ciência, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus» (Efés., III, 18-19).


            Nunca uma língua humana falou como Jesus na sua Oração Sacerdotal, em que Cristo dá a Si próprio o mais solene testemunho, em que a verdade viva nos desvenda o Seu segredo, em que o Verbo pede que aqueles que ama formem com Ele uma pura unidade, semelhante à que Ele forma com o Pai. Nunca subiu ao céu uma oração mais santa, mais poderosa e mais segura, uma oração feita com mais absoluta dedicação do que esta prece de Deus-Homem. Ela permite-nos lançar um olhar profundo para os abismos da misericórdia; são palavras claras que nos revelam até que ponto se eleva a condescendência de Deus. «Pai, é chegada a hora, glorifica o teu Filho, para que o teu Filho te glorifique a ti: assim como lhe deste poder sobre todos os homens, dá-lhe também que Ele dê a vida eterna a todos os que lhe confiaste» (João, XVII, 1-2).

            As palavras de Cristo estão próximas da nossa vida, porque brotam diretamente da fonte divina. Nada têm de friamente teórico e vão logo direitas ao coração, que a infância evangélica o torna sensível à ação divina. Pois os interesses pelos quais os homens perdem a liberdade, o ar falsamente sério de uma falsa maturidade, distrai a alma, embota e cega a sensibilidade do espírito. É preciso abandonarmos o mundo, ainda que continuemos nele; é preciso, principalmente, abandonarmo-nos a nós próprios para nos comovermos com a divina nova do amor de Cristo, que ele não cessa de nos anunciar interiormente.

            Logo que a alma cede ao convite da caridade e da graça, fica apta a entrar no Santo dos Santos que se abre no mais íntimo do seu ser. É aí que o Pai mora e gera o Filho. E na medida em que o homem recebe com delicada passividade o que Deus lhe dá, ganha as forças necessárias para as obras que o Pai espera dele. Para quem sabe ouvir o Verbo divino, a vida não é mais que um único cântico de louvor, feito de ação e de oração, nessa plenitude de unidade que Cristo nos prometeu «Eu neles e tu em mim, para que sejam consumados na Unidade, e para que o mundo conheça que tu me enviaste, e que os amaste, como me amaste também a mim» (João, xVII,23).

            A comunidade dos corações unidos a Deus e ao seu Filho no amor não é, sem dúvida, numerosa: mas foi a este pequeno rebanho que Cristo disse que não temesse. É destas almas que o mundo recebe secretamente a sua luz. São elas que Deus quer guardar como o Sol da terra. «Porque foi do agrado de vosso Pai dar-vos o reino» (Luc. XVII, 32).

            Que o raio da graça, entrando nos corações divididos, os restitua à sua simplicidade. Que o amor faça reinar em cada um de nós a unidade e a sua profunda paz: esta é a condição necessária e suficiente para que deixem também de existir as divisões e as lutas entre os homens, que tanto afligem o mundo. O desejo de Cristo de nos unir nEle, na caridade do Pai, é imenso: é infinito como o próprio Deus. Se Jesus nos deu a conhecer o nome do Seu Pai foi para que a gratidão filial e a caridade fraterna nos tornassem verdadeiramente Seus filhos, certos da morada que os espera, da herança que lhes está prometida e do fim para que foram criados. Pois estes bens são inteiramente nossos, desde que o homem, adaptado como filho de Deus, aceite a Sua santa vontade.

            Somos muitas vezes incapazes de cumprir obrigações secundárias e aparentemente fáceis, porque não aceitamos a missão interior e sublime que Deus nos confiou. Consentirmos no nosso destino, sabermos que somos co-herdeiros e irmãos de Cristo, é a primeira condição da união e das próprias purificações que nos levam à união. O espírito não deve ter uma saúde débil, uma respiração avara sufoca-o. O recalcamento do divino na nossa alma é que é a causa do nosso desequilíbrio e da nossa fraqueza. Ouçamos a pura eloqüência do Absoluto: ela fará empalidecer a palavra terrena e toda a ciência dos homens, e conduzir-nos-á sem desvios à eterna Fonte cuja generosidade passará a ser nossa. «Todos nós participamos da sua plenitude» (João, I, 16). «Sede cheios da plenitude de Deus» (Efés.; III, 19).

            A fé tímida de quase todos os cristãos desconhece o alcance destas revelações, faz que eles ignorem os recursos infinitos da graça e a maravilhosa liberalidade do amor, no convite que nos faz para participarmos na sua vida. Nenhuma medida humana é válida para ele: nem o tempo, nem o espaço põem limites a este reino em que reina a unidade e que não conta os seus dons. Evitemos pôr as promessas divinas no plano dos nossos compromissos. Quem não as aceita com uma fé generosamente vivida, fica na verdade surdo e insensível perante elas, pode apreender o seu sentido material, mas é-lhe vedada compreensão do seu conteúdo divino.
«O homem animal não percebe aquelas coisas que são do Espírito de Deus, porque, para ele, são uma estultícia e não as pode entender; porque elas ponderam-se espiritualmente. - O espírito tudo penetra, mesmo as profundidades de Deus» (Cor., 14 e 10). 

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