Que a tristeza é quase inútil,
antes contrária,
ao
serviço do santo amor
Não se pode meter um enxerto de carvalho numa
pereira, tanto essas duas árvores são de humor contrário uma à outra; tão pouco
se poderia enxertar a ira, nem a cólera, nem o desespero, na caridade, ao menos
seria muito difícil. Quanto à ira, vimo-la no discurso do zelo; quanto ao
desespero, a não ser que o reduzamos à justa desconfiança de nós mesmos, ou
então ao sentimento que devemos ter da vaidade, fraqueza e inconstância dos
favores, assistência e promessas do mundo, não vejo que serviço pode o divino amor
tirar dele.
E, quanto à tristeza, como pode ela ser útil à
santa caridade, já que entre os frutos do Espírito Santo a alegria é colocada
junto à caridade? Não obstante, o grande Apóstolo assim diz: A tristeza
que é segundo Deus opera a penitência estável em salvação, mas a tristeza do
mundo opera a morte (Gal 3, 22; 2 Cor 7, 10).
Há, pois, uma tristeza segundo Deus, a qual é exercida ou pelos pecadores na penitência, ou pelos bons na compaixão pelas misérias temporais do próximo, ou pelos perfeitos na deploração, queixa e condolência das calamidades espirituais das almas; pois David, São Pedro, a Madalena choraram pelos seus pecados, Agar chorou vendo seu filho quase morto de sede, Jeremias sobre a ruína de Jerusalém, Nosso Senhor sobre os Judeus e Seu grande Apóstolo gemendo diz estas palavras: Muitos andam, os quais, eu muitas vezes vos disse e de novo vos digo que são inimigos da cruz de Jesus Cristo (Filip 3, 18).
Há, pois, uma tristeza deste mundo que provém
igualmente de três causas:
Porquanto, 1º, provém às vezes do inimigo infernal,
que, por mil sugestões tristes, melancólicas e molestas obscurece o
entendimento, debilita a vontade e conturba toda a alma. E, assim como um
nevoeiro espesso enche de catarro a cabeça e o peito, e por esse meio torna a
respiração difícil, e põe em perplexidade o viajor, assim também o maligno,
enchendo o espírito humano de pensamentos tristes, tira-lhe a facilidade de
aspirar a Deus, e dá-lhe um aborrecimento e desânimo extremo, a fim que
desesperá-lo e de perdê-lo. Dizem que há um peixe a que chamam diabo do mar1 o
qual, revolvendo e empurrando para cá e para lá o lodo, turva a água à volta de
si, para se manter nela como na emboscada, e dela, logo que avista os pobres
peixinhos, atira-se sobre eles, assalta-os e os devora, donde talvez tenha
vindo a expressão pescar em água turva, de que se usa comumente.
Ora, dá-se com o diabo do inferno o que se dá com o diabo do mar; pois ele arma
suas emboscadas na tristeza, quando, tendo tornado a alma perturbada por uma multidão
de pensamentos aborrecidos, lançados aqui e acolá no entendimento, precipita-se
depois sobre os afetos, afligindo-os com desconfianças, ciúmes, aversões,
invejas, apreensões supérfluas dos pecados passados, e fornecendo uma
quantidade de sutilezas vãs, acres e melancólicas, a fim de que rejeitemos toda
sorte de razões e consolações.
2º A tristeza procede também, outras vezes, da
condição natural, quando o temperamento melancólico domina em nós, e este não é
verdadeiramente vicioso em si mesmo, mas no entanto nosso inimigo serve-se dele
grandemente para urdir e tramar mil tentações em nossas almas; porquanto, assim
como as aranhas quase nunca fazem suas teias senão quando o tempo está
encoberto e o céu nublado, assim também esse espírito maligno nunca tem tanta
facilidade para armar as ciladas das suas sugestões nos espíritos doces,
benignos e alegres, como nos espíritos sombrios, tristes e melancólicos; pois
os agita facilmente com mágoas, suspeitas, ódios, murmurações, censuras,
invejas, preguiça e entorpecimento espiritual.
3º Finalmente, há uma tristeza que a variedade dos
acidentes humanos nos acarreta.Que alegria posso eu ter, dizia Tobias, não
podendo ver a luz do céu? (Tob 5, 12). Assim Jacob ficou triste com a
notícia da morte de seu José, e David com a do seu Absalão. Ora, essa tristeza
é comum aos bons e aos maus, porém nos bons é moderada pela aquiescência e
resignação à vontade de Deus; como se viu em Tobias, que, de todas as
adversidades de que foi tocado, deu graças à divina majestade, e em Job, que
por elas bendisse o nome do Senhor; e em Daniel, que converteu suas doresem
cânticos. Pelo contrário, quanto aos mundanos, essa tristeza lhes é
ordinária, e converte-se em pesares, desespero e atordoamentos de espíritos;
pois eles são semelhantes às macacas e marmotas, que estão sempre sorumbáticas,
tristes e zangadas por falta da lua, mas, ao contrário, à renovação desta,
saltam, dançam e fazem as suas momices. O mundano é ronhento, intratável, acre
e melancólico na falta das prosperidades terrenas, e na afluência destas é
quase sempre fanfarrão, divertido e insolente.
De certo, a tristeza da verdadeira penitência não
deve tanto ser chamada tristeza como desprazer, ou sentimento e detestação do
mal, tristeza que nunca é nem aborrecida nem mal humorada, tristeza que não
entorpece o espírito, mas que o torna ativo, pronto e diligente; tristeza que
não abate o coração, mas o eleva pela oração e pela esperança, e o leva a fazer
os rasgos do fervor de devoção; tristeza que no forte das suas amarguras produz
sempre a doçura de uma consolação incomparável, consoante o preceito do grande
Santo Agostinho:
Entristeça-se o penitente sempre, mas sempre se
alegre com a sua tristeza. Diz Cassiano que a tristeza que opera a sólida
penitência e o agradável arrependimento, da qual a gente nunca se arrepende, é
obediente, afável, humilde, bondosa, suave, paciente, como sendo saída e
descendente da caridade. De tal sorte que, estendendo-se a toda dor de corpo e
contrição de espírito, de certo modo é alegre, animada e revigorada pela
esperança do seu proveito, e retém toda a suavidade da afabilidade e
longanimidade, tendo em si mesma os frutos do Espírito Santo que o santo
Apóstolo narra. Ora, os frutos do Espírito Santo são: caridade,
alegria, paz, longanimidade, bondade, benignidade, fé, mansidão, continência (Gal
4, 22). Tal é a verdadeira, e tal a boa tristeza, que por certo não é
propriamente triste nem melancólica, mas somente atenta e afeiçoada a detestar,
rejeitar e impedir o mal do pecado quanto ao passado e quanto ao futuro. Nós
vemos também múltiplas vezes penitências muito apressadas, perturbadas,
impacientes, chorosas, amargas, suspirantes, inquietas, grandemente ásperas e
melancólicas, as quais enfim se mostram infrutíferas e sem conseqüência de
qualquer verdadeira emenda, porque não procedem dos verdadeiros motivos da
virtude de penitência, e sim do amor-próprio e natural.
A tristeza do mundo opera a morte (2
Cor 7, 10), diz Apóstolo. Teótimo, cumpre pois evitá-la e rejeitá-la segundo o
nosso poder. Se ela é natural, devemos repeli-la, contravindo aos seus
movimentos, afastando-a por exercícios próprios para isto, e usando dos
remédios e modos de viver que os próprios médicos julgarem oportunos. Se provém
de tentação, devemos descobrir vosso coração ao pai espiritual, o qual nos
prescrevera os meios de vencê-la, conforme o que sobre isso dissemos na quarta
parte da Introdução à vida devota. Se é acidental, recorramos ao
que está assinalado no livro oitavo, a fim de vermos o quanto as tribulações
são amáveis aos filhos de Deus, e como a grandeza das nossas esperanças na vida
eterna deve tornar quase inconsideráveis todos os acontecimentos passageiros da
vida temporal.
De resto, por entre todas as melancolias que nos
podem advir, devemos empregar a autoridade da vontade superior para fazermos
tudo o que pudermos em favor do amor divino. Certamente há ações que dependem
tanto da disposição e compleição corporal, que não está em nosso poder fazê-las
a nosso gosto. Pois um melancólico não poderia manter nem os olhos, nem a
palavra, nem o semblante na mesma graça e suavidade que teria se estivesse
descarregado desse mau humor; bem pode, porém, embora sem graça, dizer palavras
graciosas, bondosas e corteses, e, apesar da sua inclinação, fazer por força de
razão as coisas convenientes em palavras e em obras de caridade, doçura e
condescendência. Uma pessoa é desculpável de nem sempre ser alegre, pois não é
dono da alegria para tê-la quando quiser; mas não é desculpável de não ser
sempre bondosa, manejável e condescendente, pois isto está sempre no poder da
nossa vontade, e para isso não é preciso senão resolver-se a superar o humor e
inclinação contrária.
1) O nome de diabo do mal aplica-se a vários
peixes do Oceano e do Mediterrâneo: à arraia, à escorpena e sobretudo ao diabo
marinho.
(Tratado do amor de Deus por São
Francisco de Sales, Livro décimo primeiro, capítulo XXI)
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