II e Ultima Parte
III
A dor da alma, porém,
deve ter dois companheiros para que a purifiquem e aplaquem a Deus, a saber: o
temor do juízo divino e o ardor de interno desejo, afim de que recuperes pelo
temor um coração humilde, pelo desejo um coração devoto e pela contrição um
coração ilibado.
1. - Teme, pois, os
juízos divinos que são "um abismo profundo" (Ps. 35,
7). Teme, repito, teme muito para que, embora de algum modo penitente, não
desagrades ainda a Deus; teme mais, para que depois não recomeces a
ofender a Deus; teme muitíssimo, para que no fim não te afastes de
Deus, carecendo sempre de luz, ardendo sempre no fogo,
jamais livre do verme. Somente uma vida de verdadeira penitência e
uma morte na graça da perseverança pode preservar-te desta infelicidade. Canta,
pois, com o profeta: "Trespassa com o teu temor a minha carne, porque
temos os teus juízos" (Ps. 118, 120).
2. - Arrepende-te e tem
cuidado por causa dos pecados cometidos. Arrepende-te, aconselho,
arrepende-te muito, porque por eles aniquilaste todo o bem que de Deus
recebeste; (trata-se do pecado mortal que destrói todos os dons
sobrenaturais); arrepende-te mais porque ofendeste a Cristo
que por ti nasceu e foi crucificado; arrepende-te muitíssimo porque
desprezaste a Deus, cuja majestade desonraste transgredindo as
suas leis, cuja verdade negaste, cuja bondade afrontaste. Pelo
pecado desonraste, desfiguraste e transtornaste toda a criação; porque pela
rebeldia contra os divinos estatutos, mandamentos e juízos, abusaste de todas
as coisas que, segundo a vontade de Deus, te deveriam servir: das criaturas,
dos merecimentos alcançados, das misericórdias de Deus, os dons gratuitamente outorgados,
e o prêmio prometido.
Depois de atentamente considerar tudo isto, toma
luto como por teu filho único, chora amargamente (Jer. 6, 26); faze
correr uma como que corrente de lágrimas de dia e de noite; não te dês descanso
algum nem se cale a menina dos teus olhos (Lament. 2, 18).
3. - Deseja, contudo, os dons
divinos, elevando-te pela chama do divino amor, até Deus, o qual tão
pacientemente te suportou nos teus pecados, tão longanimemente esperou, tão
misericordiosamente te reconduziu à penitência, concedendo-te o perdão,
infundindo-te a graça, prometendo-te a coroa, enquanto de tua parte Lhe
ofertaste - ou antes d'Ele recebeste para Lhe ofertar, - o sacrifício
de um Espírito atribulado, de um coração contrito e humilhado (Ps. 50,
19) por meio de sentida compunção, confissão sincera e satisfação condigna.
Deseja, digo, muito a benevolência divina
por uma larga comunicação do Espírito Santo, deseja mais asemelhança com
Deus por uma imitação exata de Cristo crucificado, deseja muitíssimo,
a posse de Deus por uma visão clara do Eterno Padre, para que
na verdade cantes com o Profeta: "A minha alma arde em sede por Deus
forte e vivo; quando irei e aparecerei diante da face de Deus?" (Ps.
41, 3).
IV
Ora, para conservar em ti este espírito de
temor, de dor e de desejo, exerce-te externamente numa
perfeita modéstia, justiça e piedade, afim de que, segundo escreve o
Apóstolo, "renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivas sóbria,
justa e piedosamente neste século" (Tito, 2, 12).
1. - Exerce-te numa perfeita modéstia para
que, segundo a doutrina do Apóstolo, "a tua modéstia seja conhecida por
todos os homens" (Phil. 4, 5). Exerce-te primeiro na modéstia da
parcimônia no comer e vestir, no dormir e vigiar, no recreio e no trabalho, não
excedendo a medida em coisa alguma.
Depois exerce-te na modéstia da disciplina,
com moderação no silêncio e no falar, na tristeza e na alegria, na clemência e
no rigor, conforme as circunstâncias o exigem e a sã razão o prescreve.
Finalmente, exerce-te na modéstia da
civilidade, regulando, ordenando e, compondo as ações, os movimentos, os
gestos, as vestes, os membros e os sentidos, conforme o requer a educação moral
e o costume na ordem, para que merecidamente pertenças ao número daqueles aos
quais o Apóstolo diz: "Faça-se tudo entre vós com decência e ordem"
(I Cor. 14, 40).
2. - Exerce-te também na justiça para
que te sejam aplicáveis as palavras do Profeta: "Reina por meio da
verdade, da mansidão e da justiça" (Ps. 44, 5).
Na justiça, afirmo, integra por zelo pela honra
divina, por observância da lei de Deus e por desejo da salvação do próximo.
Na justiça regulada pela obediência aos
superiores, pela sociabilidade aos iguais, pela punição das
faltas dos inferiores.
Na justiça perfeita, de forma que
aproves toda a verdade, favoreças a bondade, resistas à maldade tanto
no Espírito, como nas palavras e obras, não fazendo a ninguém o que não queres
que te façam, não negando a ninguém o que dos outros desejas, para que imites
com perfeição aqueles a quem foi dito: "Se a vossa justiça não for
maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus"
(Matth. 5, 20).
3. - Finalmente, exerce-te na piedade,
porque, como diz o Apóstolo, "a piedade é útil para tudo, porque tem a
promessa da vida presente e futura" (I Tim. 4, 8).
Exerce-te na piedade do culto divino recitando
as horas canônicas atenta, devota e reverentemente, acusando e chorando as
faltas quotidianas, recebendo a seu tempo o Santíssimo Sacramento e ouvindo
todos os dias a santa missa.
Na piedade, por meio da salvação das almas, auxiliando ora por frequentes orações, ora
por instrutivas palavras, ora pelo estímulo do exemplo, para que quem
ouve diga: Vem! (Apoc. 22, 17). Isto, porém, cumpre fazer com tanta
prudência, que a própria alma não sofra prejuízo.
Na piedade, por meio do alívio das
necessidades corporais, suportando com paciência, consolando amigavelmente,
ajudando com humildade, alegria e misericórdia, para desta forma: cumprires o
mandamento divino enunciado pelo Apóstolo: "Carregai os fardos uns dos
outros, e desta maneira cumprireis a lei de Cristo" (Gal. 6, 2).
Para praticares tudo isto, o meio melhor, eu
o creio, é a lembrança do Crucificado, afim de que o teu Dileto, como um
ramalhete de mirra (Cântico dos C. 1, 12), descanse sempre
junto ao teu coração.
Isto te queira prestar
Aquele que é bendito por todos os séculos dos séculos.
Amém.
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