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sábado, 16 de novembro de 2013

II e Ultima Parte - A Direção da Alma e a Vida Perfeita, de São Boaventura



II e Ultima Parte 

III

 A dor da alma, porém, deve ter dois companheiros para que a purifiquem e aplaquem a Deus, a saber: o temor do juízo divino e o ardor de interno desejo, afim de que recuperes pelo temor um coração humilde, pelo desejo um coração devoto e pela contrição um coração ilibado.

1. - Teme, pois, os juízos divinos que são "um abismo profundo" (Ps. 35, 7). Teme, repito, teme muito para que, embora de algum modo penitente, não desagrades ainda a Deus; teme mais, para que depois não recomeces a ofender a Deus; teme muitíssimo, para que no fim não te afastes de Deus, carecendo sempre de luz, ardendo sempre no fogo, jamais livre do verme. Somente uma vida de verdadeira penitência e uma morte na graça da perseverança pode preservar-te desta infelicidade. Canta, pois, com o profeta: "Trespassa com o teu temor a minha carne, porque temos os teus juízos" (Ps. 118, 120).

2. - Arrepende-te e tem cuidado por causa dos pecados cometidos. Arrepende-te, aconselho, arrepende-te muito, porque por eles aniquilaste todo o bem que de Deus recebeste; (trata-se do pecado mortal que destrói todos os dons sobrenaturais); arrepende-te mais porque ofendeste a Cristo que por ti nasceu e foi crucificado; arrepende-te muitíssimo porque desprezaste a Deus, cuja majestade desonraste transgredindo as suas leis, cuja verdade negaste, cuja bondade afrontaste. Pelo pecado desonraste, desfiguraste e transtornaste toda a criação; porque pela rebeldia contra os divinos estatutos, mandamentos e juízos, abusaste de todas as coisas que, segundo a vontade de Deus, te deveriam servir: das criaturas, dos merecimentos alcançados, das misericórdias de Deus, os dons gratuitamente outorgados, e o prêmio prometido.

Depois de atentamente considerar tudo isto, toma luto como por teu filho único, chora amargamente (Jer. 6, 26); faze correr uma como que corrente de lágrimas de dia e de noite; não te dês descanso algum nem se cale a menina dos teus olhos (Lament. 2, 18).

3. - Deseja, contudo, os dons divinos, elevando-te pela chama do divino amor, até Deus, o qual tão pacientemente te suportou nos teus pecados, tão longanimemente esperou, tão misericordiosamente te reconduziu à penitência, concedendo-te o perdão, infundindo-te a graça, prometendo-te a coroa, enquanto de tua parte Lhe ofertaste - ou antes d'Ele recebeste para Lhe ofertar, - o sacrifício de um Espírito atribulado, de um coração contrito e humilhado (Ps. 50, 19) por meio de sentida compunção, confissão sincera e satisfação condigna.

Deseja, digo, muito a benevolência divina por uma larga comunicação do Espírito Santo, deseja mais asemelhança com Deus por uma imitação exata de Cristo crucificado, deseja muitíssimo, a posse de Deus por uma visão clara do Eterno Padre, para que na verdade cantes com o Profeta: "A minha alma arde em sede por Deus forte e vivo; quando irei e aparecerei diante da face de Deus?" (Ps. 41, 3).

IV

Ora, para conservar em ti este espírito de temor, de dor e de desejo, exerce-te externamente numa perfeita modéstia, justiça e piedade, afim de que, segundo escreve o Apóstolo, "renunciando à impiedade e às paixões mundanas, vivas sóbria, justa e piedosamente neste século" (Tito, 2, 12).

1. - Exerce-te numa perfeita modéstia para que, segundo a doutrina do Apóstolo, "a tua modéstia seja conhecida por todos os homens" (Phil. 4, 5). Exerce-te primeiro na modéstia da parcimônia no comer e vestir, no dormir e vigiar, no recreio e no trabalho, não excedendo a medida em coisa alguma.
Depois exerce-te na modéstia da disciplina, com moderação no silêncio e no falar, na tristeza e na alegria, na clemência e no rigor, conforme as circunstâncias o exigem e a sã razão o prescreve.

Finalmente, exerce-te na modéstia da civilidade, regulando, ordenando e, compondo as ações, os movimentos, os gestos, as vestes, os membros e os sentidos, conforme o requer a educação moral e o costume na ordem, para que merecidamente pertenças ao número daqueles aos quais o Apóstolo diz: "Faça-se tudo entre vós com decência e ordem" (I Cor. 14, 40).

2. - Exerce-te também na justiça para que te sejam aplicáveis as palavras do Profeta: "Reina por meio da verdade, da mansidão e da justiça" (Ps. 44, 5).

Na justiça, afirmo, integra por zelo pela honra divina, por observância da lei de Deus e por desejo da salvação do próximo.

Na justiça regulada pela obediência aos superiores, pela sociabilidade aos iguais, pela punição das faltas dos inferiores.

Na justiça perfeita, de forma que aproves toda a verdadefavoreças a bondade, resistas à maldade tanto no Espírito, como nas palavras e obras, não fazendo a ninguém o que não queres que te façam, não negando a ninguém o que dos outros desejas, para que imites com perfeição aqueles a quem foi dito: "Se a vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus" (Matth. 5, 20).

3. - Finalmente, exerce-te na piedade, porque, como diz o Apóstolo, "a piedade é útil para tudo, porque tem a promessa da vida presente e futura" (I Tim. 4, 8).

Exerce-te na piedade do culto divino recitando as horas canônicas atenta, devota e reverentemente, acusando e chorando as faltas quotidianas, recebendo a seu tempo o Santíssimo Sacramento e ouvindo todos os dias a santa missa.

Na piedade, por meio da salvação das almas, auxiliando ora por frequentes orações, ora por instrutivas palavras, ora pelo estímulo do exemplo, para que quem ouve diga: Vem! (Apoc. 22, 17). Isto, porém, cumpre fazer com tanta prudência, que a própria alma não sofra prejuízo.

Na piedade, por meio do alívio das necessidades corporais, suportando com paciência, consolando amigavelmente, ajudando com humildade, alegria e misericórdia, para desta forma: cumprires o mandamento divino enunciado pelo Apóstolo: "Carregai os fardos uns dos outros, e desta maneira cumprireis a lei de Cristo" (Gal. 6, 2).

Para praticares tudo isto, o meio melhor, eu o creio, é a lembrança do Crucificado, afim de que o teu Dileto, como um ramalhete de mirra (Cântico dos C. 1, 12), descanse sempre junto ao teu coração.

Isto te queira prestar Aquele que é bendito por todos os séculos dos séculos.

Amém.

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