VI Parte
da Publicação
1º) O olhar de Deus
Primeiramente o olhar de Deus, que, como um grande rei, do alto de
uma torre, olha complacentemente e louvando-lhe a coragem, o seu soldado que
peleja.
Que olhará Deus na terra? Os reis e imperadores em seus tronos?
Muitas vezes Ele os contempla com desprezo. As grandes vitórias dos exércitos
do Estado? As pedras preciosas? Numa palavra: as coisas que são grandes aos
olhos dos homens? O que é grande aos olhos dos homens é abominação diante de
Deus (113) Que olhará Ele então com prazer e complacência e de que pedirá
notícias aos anjos e aos próprios demônios? Um homem que, por Deus, se bate com
a sorte, o mundo, o inferno e ele próprio, um homem que carrega alegremente a
sua cruz. Não viste na terra uma grande maravilha que todo o céu contempla com
admiração?, disse o Senhor a Satanás: “Não viste meu servo Jó”(114), que sofre
por mim?
2º) A mão de Deus
[56] Em segundo lugar, considerai a mão deste poderoso Senhor, que
permite todo o mal que da natureza nos advém, desde o maior até o menor; a mão
que colocou um exército de cem mil homens no campo de batalha (115) e faz cair
as folhas das árvores e os cabelos de vossa cabeça (116); a mão que, havendo
rudemente atingido Jó, vos toca docemente pelo pouco sofrimento que vos envia.
Com essa mão Ele formou o dia e a noite, o sol e as trevas, o bem e o mal;
permitiu os pecados que se cometem e que vos melindram; não lhes fez a malícia,
porém lhes permitiu a ação.
Assim, quando virdes um Sémei injuriar-vos e apedrejar-vos, como
ao rei Davi, (117) dizei a vós mesmos: “Não nos vinguemos. Deixemo-lo, porque o
Senhor lhe ordenou de agir assim. Sei que mereci toda sorte de ultrajes e é
justo que Deus me castigue. Parai, braços meus: Parai, língua minha. Não
ataqueis. Nada digais. Este homem ou esta mulher me injuriam por palavras ou
por obras; são embaixadores de Deus, que vêm de sua misericórdia, para exercer
vingança amistosa. Não irritemos sua justiça usurpando os direitos de sua
vingança; não desprezemos a sua misericórdia resistindo às suas amorosas
chicotadas, para que ela não nos reconduza, por vingança, à pura justiça da
eternidade.”
Olhai uma das mãos de Deus, que, onipotente e infinitamente
prudente, vos sustenta, enquanto a outra vos atinge; com uma das mãos Ele
mortifica e com a outra vivifica; rebaixa e exalta, e, com seus dois braços,
doce e fortemente, alcança, de um polo ao outro, a vossa vida (118); docemente,
não permitindo que sejais tentados e provocados acima de vossas forças: -
fortemente, secundando-vos com graça poderosa e correspondente à violência e
duração da tentação e da aflição; fortemente, ainda uma vez, tornando-se Ele
próprio, segundo o diz pelo espírito de sua Santa Igreja, “vosso apoio à borda
do precipício perto do qual vos encontrais, vosso companheiro no caminho onde
vos perdeis, vossa sombra no calor que vos caustica, vossa vestimenta na chuva
que vos molha e no frio que vos enregela; vossa carruagem na fadiga que vos
aniquila, vosso socorro na adversidade que vos visita, vosso bastão nos
caminhos escorregadios e vosso porto no meio das tempestades que vos ameaçam de
ruína e naufrágio”(119).
3º) As chagas e as dores de Jesus
Cristo Crucificado
[57] Em terceiro lugar, olhai as chagas e as dores de Jesus Cristo
Crucificado. Ele mesmo vo-lo diz: “Ó vós que passais pelo caminho espinhoso e
crucificado por que passei, olhai e vede: olhai com os próprios olhos do vosso
corpo e vede, com os olhos de vossa contemplação, se vossa pobreza, vossa
nudez, vosso desprezo, vossas dores, vossos abandonos são semelhantes aos meus;
olhai-me, a mim que sou inocente, e queixai-vos, vós que sois culpados!” (120).
O Espírito Santo nos ordena, pela boca dos Apóstolos, esta mesma
contemplação de Jesus Crucificado (121); ordena que nos armemos com este
pensamento(122) mais penetrante e terrível para todos os nossos inimigos que
todas as outras armas. Quando fordes atacados pela pobreza, pela abjeção, pela
dor, pela tentação e pelas cruzes, armai-vos com um escudo, uma couraça, um
capacete e uma espada de dois gumes (123), a saber: o pensamento de Jesus
Crucificado. Eis a solução de toda dificuldade e a vitória sobre qualquer
inimigo.
4º) Ao alto, o céu; em baixo o
inferno.
[58] Em quarto lugar olhai, ao alto, a bela coroa que vos espera
no céu, se carregardes bem vossa cruz. Foi esta recompensa que sustentou os
patriarcas e os profetas em sua fé e nas perseguições; que animou os Apóstolos
e os Mártires em seus trabalhos e tormentos. Preferimos - diziam os Patriarcas,
com Moisés - sofrer aflições com o povo de Deus, para ser feliz com Ele
eternamente, que gozar de um prazer criminoso por um só momento (124). Sofremos
grandes perseguições por causa da recompensa (125), diziam os profetas com
Davi.
Somos como vítimas destinadas à morte, como espetáculo para o
mundo, os anjos e os homens pelos nossos sofrimentos, como a escória e o
anátema do mundo (126), diziam os Apóstolos e os Mártires com São Paulo, por
causa do peso imenso da Glória eterna que este momento de breve sofrimento
produz em nós (127).
Olhemos sobre nossas cabeças os anjos que nos dizem, em alta vos:
“Tende cuidado para não perderdes a coroa marcada pela cruz que vos é dada, se
a levardes bem. Se não a carregardes bem, outro o fará e vos arrebatará vossa
coroa (128). Combatei fortemente, sofrendo com paciência, dizem-nos todos os
santos, e entrareis no reino eterno (129)”. Ouçamos enfim Jesus Cristo, que nos
diz: “Só darei minha recompensa àquele que sofrer e vencer pela paciência
(130)”.
Olhamos embaixo o lugar que merecemos e que nos espera no inferno
com o mau ladrão e os réprobos, se, como eles, sofremos com murmurações,
despeito e vingança. Exclamemos com Santo Agostinho: “Queimai, Senhor, cortai,
talhai e retalhai neste mundo para castigar meus pecados, contanto que os
perdoeis na eternidade”!
Nunca se queixar da criaturas.
[59] 12º: Nunca vos queixeis voluntariamente e entre murmurações,
das criaturas de que Deus se serve para vos afligir. Distingui, para tanto,
três espécies de queixas nos sofrimentos.
- A primeira é involuntária e natural: é a do corpo que geme,
suspira, se queixa, chora e se lamenta. Quando a alma, como já disse, está
resignada com a vontade de Deus, em sua parte superior, não há nenhum pecado.
- A segunda é razoável; é quando alguém se queixa e descobre seu
mal aos que podem e devem tratá-lo, como um superior ou o médico. Esta queixa
pode ser imperfeita, quando for muito insistente; mas não é pecado.
- A terceira é criminosa: é quando alguém se queixa do próximo
para se isentar do mal que ele nos faz sofrer, ou para se vingar; ou quando
alguém se queixa da dor que sofre, consentindo nessa queixa e juntado a ela a
impaciência e a murmuração.
Receber sempre a cruz com reconhecimento.
[60] 13º: Nunca recebais nenhuma cruz sem beijá-la humildemente e
com reconhecimento; e quando Deus, todo bondade, vos houver favorecido com
alguma cruz um pouco considerável, agradecei-lhe de maneira especial e fazei-o
agradecer por outros, a exemplo daquela pobre mulher, que, tendo perdido todos
os seus bens em virtude de um processo injusto que lhe moveram, fez celebrar
imediatamente uma Missa, com o dinheiro que lhe restava, a fim de agradecer a
Deus a ventura que lhe era concedida (131).
Carregar suas cruzes voluntárias.
[61] 14º: Se quereis tornar-vos dignos de receber as cruzes que
vos hão de vir sem vossa participação e que são as melhores, carregai outras
voluntárias, seguindo os conselhos de um bom diretor.
Por exemplo: Tendes em casa algum móvel inútil pelo qual tendes
afeição? Dai-o aos pobres, dizendo: quererias o supérfluo quando Jesus é tão
pobre?
Tendes horror a algum alimento? A algum ato de virtude? A algum
mau odor? Provai-o, praticai-o, aspirai-o. Vencei-vos.
Amais alguém ou algum objeto um pouco terna e insistentemente
demais? Ausentai-vos, privai-vos, afastai-vos do que vos lisonjeia.
Tendes uma natureza muito inclinada a ver? A agir? A aparecer? A
ir a algum lugar? Parai, calai, escondei-vos, desviai os olhos.
Odiais naturalmente algum objeto? Alguma pessoa? Procurai-a
frequentemente. Dominai-vos.
[62] Se sois verdadeiramente Amigos da Cruz, o amor, que é sempre
industrioso, vos fará assim encontrar mil pequenas cruzes, com que vos
enriqueceis insensivelmente, sem temor da vaidade, que se mistura tão
frequentemente à paciência com que suportamos as cruzes muito visíveis; e
porque fostes assim fiéis em pouca coisa, o Senhor vos estabelecerá em muito
(132), como o prometeu; isto é, em muitas cruzes que vos enviará, em muita
glória que vos preparará (133) ...
NOTAS EXPLICATIVAS
(113) Lc., 16, 15.
(114) Jó., 2, 3.
(115) Montfort, sem dúvida, faz aqui alusão ao extermínio do
exército de Senaquerib por um Anjo do Eterno, que dizimou, numa noite, cento e
oitenta e cinco mil homens. (IV Reis, 19, 35).
(116) Lc., 21, 18.
(117) II Reis, 16, 5-11.
(118) Sab., 8, 1.
(119) Cf. Itinerário dos clérigos.
(120) Parafr. de Jeremias: Lament., I, 12.
(121) Gal., 3, 1.
(122) I Ped., 4, 1.
(123) Ver. Efes., 6, 12-18.
(124) Heb., 11, 25-26.
(125) Ps., 68, 8; 118, 112.
(126) I Cor., 4, 9 e 13.
(127) Cf. II Cor., 4, 17.
(128) Alusão à defecção do 40º martir de Sebaste.
(129) Escritura e Liturgia, passim.
(130) Cf. Apoc., 2, 6, 11, 17, 26; 3, 5, 12, 21; 21, 7.
(131) Cf.
Boudon: “Les sainctes voyes de la croix”, liv IV, cap. VI.
(132) Mat., 21, 21 e 23.
(133) Será este o fim da “Carta”? Decerto poderia eta terminar com
este pensameto. O Padre Quérard, historiador de Montfort (1887), entretanto,
lamenta que a conclusão dela se haja perdido. Na ausência do manuscrito, é
difícil resolver a questão.
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