V Parte
da publicação
4º - Nas Pegadas de Jesus Cristo:
... “E Me Siga!”
É preciso sofrer á maneira de Jesus Cristo.
[41] Não é, porém, suficiente sofrer: o demônio e o mundo tem,
seus mártires; é preciso sofrer e levar a cruz nas pegadas de Jesus Cristo: -
sequatur me! que me siga! - ou seja, da maneira que Ele a carregou. E eis, para
isto, as regras que deveis seguir:
As quatorze regras
Não procurar cruzes propositadamente ou pela própria culpa.
[42] 1º: Não procureis cruzes propositadamente ou por vossa culpa;
não se deve fazer o mal para que dele resulte um bem (90); não se deve, sem
inspiração especial, fazer as coisas de maneira má, para atrair sobre si mesmo
o desprezo dos homens. É antes preciso imitar Jesus Cristo, de quem se disse
fez bem todas as coisas (91), não por amor próprio ou por vaidade, mas para
agradar a Deus e conquistar a alma do próximo. E se executardes os vossos trabalhos o melhor que
puderdes, não vos hão de faltar contradições, perseguições, nem desprezos, que
a Divina Providência vos enviará contra vossa vontade e sem vos consultar.
Consultar o bem do próximo.
[43] 2º: Se praticais algum ato indiferente, mas do qual o próximo
se escandaliza, ainda que fora de propósito, abstende-vos dele, por caridade,
para que cesse o escândalo dos pequenos; o ato heroico de caridade que
praticardes nessa ocasião vale infinitamente mais do que aquilo que fazíeis ou
pretendíeis fazer.
Se, entretanto, o bem que fazeis é necessário ou útil ao próximo,
e escandalizar, sem razão, algum fariseu ou mau espírito, consultai uma pessoa
prudente, para saber se o que fazeis é necessário e muito útil ao bem do
próximo; e, se ela assim o julgar, continuai e deixai falar, contanto que vos
deixem agir, e respondei, em tais ocasiões, o que Nosso Senhor respondeu a
alguns de seus discípulos que vieram dizer-lhe que os Fariseus se haviam
escandalizado com as suas palavras e ações: “Deixai-os falar. São cegos”. (92).
Admirar, sem pretender atingi-la, a sublime virtude dos santos.
[44] 3º: Apesar de alguns santos e pessoas importantes terem
pedido, procurado e, por meio de ações ridículas, atraído sobre si mesmos,
cruzes, desprezos e humilhações, adoremos e admiremos apenas a ação do Espírito
Santo sobre suas almas e humilhemo-nos diante de tão sublime virtude, sem ousar
voar tão alto, um vez que, comparados a essas rápidas águias e rugidores leões,
não passamos de criaturas sem coragem e sem força de vontade. (93)
Pedir a Deus a sabedoria da Cruz.
[45] 4º: Podeis, entretanto, e mesmo o deveis, pedir a sabedoria
da cruz, que é uma ciência saborosa e experimental da verdade, que nos faz ver,
à luz da fé, os mais ocultos mistérios, entre os quais o da cruz, e isto só se obtém
mediante grandes trabalhos, profundas humilhações e orações fervorosas. Se
precisardes do espírito principal (94), que nos faz levar corajosamente as mais
pesadas cruzes; do espírito bom (95) e manso, que nos faz saborear, na parte
superior da alma, as mais repugnantes amarguras; do espírito são e reto (96),
que procura só a Deus; da ciência da cruz, que encerra todas as coisas; numa
palavra, do tesouro infinito cujo bom emprego torna a alma participante da
amizade de Deus (97), pedi a sabedoria; pedi-a incessante e fortemente, sem
hesitar (98), sem receio de não a obter, e ela vos será dada, infalivelmente, e
em seguida vereis claramente, por experiência própria, como pode ser possível
desejar, procurar e saborear a cruz.
Humilhar-se das próprias faltas, sem se perturbar.
[46] 5º: Quando, por ignorância ou mesmo por vossa culpa,
cometerdes algum erro de que resulte para vós alguma cruz, humilhai-vos
imediatamente diante de vós mesmos, sob a mão poderosa de Deus (99), sem vos
perturbar voluntariamente, dizendo: “Eis, Senhor, uma peça que me pregou meu
ofício”! E se houver pecado na falta que cometestes, aceitai a humilhação de
vosso orgulho. Algumas vezes, e até muitas vezes, Deus permite que seus maiores
servos, os mais elevados em graça, cometam as faltas mais humilhantes, a fim de
humilhá-los aos seus próprios olhos e aos olhos dos homens, a fim de tirar-lhes
a vista e o pensamento orgulhoso das graças que lhes dá e do bem que fazem, a
fim de que, segundo a palavra do Espírito Santo, nenhuma carne se glorifique
diante de Deus (100).
Deus nos humilha para purificar-nos
[47] 6º: Ficai bem persuadidos de que tudo o que existe em nós
está inteiramente corrompido (101) pelo pecado de Adão e pelos pecados atuais;
e não apenas os sentidos do corpo, mas todas as potências da alma; e que, logo
que o nosso espírito corrompido olha, refletida e complacentemente, algum dom
de Deus em nós, esse dom, ação ou graça fica todo poluído e corrompido e Deus
dele desvia os seus olhos divinos. Se os olhares e os pensamentos do espírito
do homem estragam assim as melhores ações e os mais divinos dons, que diremos
dos atos da própria vontade, que são ainda mais corrompidos que os do espírito?
(102)
Não é de espantar, depois disto, que Deus sinta prazer em esconder
os seus no segredo de sua face (103), para que não sejam manchados pelos
olhares dos homens e pelos seus próprios conhecimentos. E, para escondê-los
assim, o que não faz e não permite este Deus ciumento?! Quantas humilhações
lhes proporciona!
Em quantas faltas os deixa cair! De que tentações permite sejam
atacados, como S. Paulo! (104) Em que incertezas, trevas e perplexidade os
deixa! Ah! como Deus é admirável nos seus santos e nos caminho pelos quais os
conduz à humildade e à santidade!
Evitar nas cruzes, o perigo do orgulho.
[48] 7º: Procurai bem, portanto, evitar crer, como os devotos
orgulhosos e cheios de si, que vossas cruzes são grandes, que são provas de
vossa fidelidade e testemunhas de um singular amor de Deus para convosco. Esta
armadilha do orgulho espiritual é muito sutil e delicada, mas cheia de veneno.
Deveis crer: 1) que vosso orgulho e moleza vos levam a considerar palhas como
se fossem traves; picadas como se fossem chagas, um rato como se fosse um
elefante; e uma palavrinha no ar, - um nada, na verdade, - como se fosse uma
injúria atroz e um cruel abandono; 2) que as cruzes que Deus vos envia são
antes castigos amorosos de vossos pecados, - e de fato o são, - que sinais de
especial benevolência; 3) que, seja qual for a cruz que Ele vos enviar, ainda
assim vos poupa infinitamente, em virtude do número e da enormidade dos vossos
crimes, que só deveis considerar à luz da santidade de Deus, que nada de impuro
tolera e que atacastes; à luz de um Deus moribundo e aniquilado de dor, por
causa de vosso pecado, e à luz de um inferno sem fim, que merecestes mil vezes
e talvez cem mil; 4) que na paciência com que sofreis há muito mais de humano e
natural do que o julgais: provam-no as pequenas mitigações; as procuras
secretas de consolação; as aberturas de coração, - tão naturais, - a vossos
amigos e, talvez, ao vosso diretor; as desculpas tão finas e prontas; as
queixas, ou melhor, as maledicências tão bem urdidas e tão caridosamente
expressas, contra os que vos fizeram algum mal; as referências e complacências
delicadas para com vossos males; a crença de Lúcifer de que sois algo de grande
(105), etc. Nunca terminaria se me fosse necessário descrever as voltas e
reviravoltas da natureza, mesmo nos sofrimentos.
Tirar maior proveito dos pequenos sofrimentos que dos grandes.
[49] 8º: Tirai proveito dos pequenos sofrimentos e mesmo mais que
dos grandes. Deus não olha tanto o sofrimento quanto a maneira por que se
sofre. Sofrer muito e mal é sofrer como condenado; sofrer muito e
corajosamente, mas por uma causa má, é sofrer como mártir do demônio; sofrer
pouco ou muito, mas sofrer por Deus, é sofrer como santo.
Se é verdade que se pode escolher as cruzes, isto é mais certo
quanto às cruzes pequenas e escondidas quando nos vêm paralelamente às grandes
e visíveis (106). O orgulho da natureza pode pedir, procurar e mesmo escolher e
abraçar as cruzes grandes e visíveis; mas escolher e levar bem alegremente as
cruzes pequenas e ocultas só pode ser o efeito de uma grande graça e de uma
grande fidelidade a Deus. Fazei, pois, como o comerciante com o seu negócio:
tirai proveito de tudo, não deixeis perder-se a mínima parcela da verdadeira
Cruz, mesmo que seja uma picada de mosca ou de alfinete, a indelicadeza de um
vizinho, uma injúria por descuido, a perda de um níquel, uma perturbaçãozinha
da alma, um leve cansaço do corpo, uma dorzinha num dos membros, etc. Tirai
proveito de tudo, como o merceeiro em sua mercearia, e, assim como ele
enriquece em dinheiro, juntando moeda por moeda em seu cofre, breve estareis
ricos em Deus. Ao
menor contratempo que sobrevier, dizei: “Deus seja bendito! - (107) Meu Deus,
eu Vos agradeço”, depois escondei na memória de Deus, que é vosso cofre, a cruz
que acabais de ganhar, e só vos lembreis dela para dizer: Obrigado! ou
Misericórdia!
Amar a cruz, não com amor sensível, mas racional e sobrenatural.
[50] 9º: Quando vos dizemos para amar a cruz, não falamos em amor
sensível, que é impossível à natureza. Distingui bem, portanto, estes três
amores: o amor sensível, o amor racional, o amor fiel e supremo; ou, em outras
palavras: o amor da parte inferior, que é a carne; o amor da parte superior,
que é a razão; e o amor da parte suprema, ou cimo da alma, que é a inteligência
esclarecida pela fé.
[51] Deus não vos pede que ameis a cruz com a vontade da carne.
Sendo ela inteiramente corrompida e criminosa, tudo o que dela se origina é
corrompido e ela não pode, por si mesma, estar sujeita à vontade de Deus e à
sua lei crucificadora. Eis por que, ao falar dela no Horto da Oliveiras, Nosso
Senhor exclama: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” (108) Se a
parte inferior do homem em
Jesus Cristo , ainda que santa, não pôde amar a cruz sem
desfalecimento, com mais forte razão a nossa, que é toda corrompida, há de a
repelir. Podemos, é verdade, experimentar, por vezes, até mesmo alegria
sensível pelo que sofremos, como aconteceu a vários santos; mas essa alegria
não vem da carne, ainda que nela esteja; vem apenas da parte superior, que se
acha tão cheia da divina alegria do Espírito Santo, que a faz estender-se até à
parte inferior, de tal sorte que em tal ocasião até mesmo a pessoa mais
crucificada pode dizer: Meu coração e minha carne estremeceram de alegria no
Deus vivo! (109)
[52] Há outra espécie de amor, que denomino racional, e que se
acha na parte superior, que é a razão. Este amor é todo espiritual e, como
nasce do conhecimento da felicidade de sofrer por Deus, é perceptível e mesmo
percebido pela alma, rejubilando-a interiormente e fortificando-a. Este amor
racional e percebido, porém, -apesar de bom, e de muito bom, - nem sempre é
necessário para que se sofra alegre e divinamente.
[53] É porque há outro amor, do cimo ou ápice da alma, dizem os
mestres da vida espiritual, - ou da inteligência, afirmam os filósofos, - pelo
qual, sem experimentar qualquer alegria dos sentidos, sem perceber nenhum
prazer racional na alma, é possível amar e saborear, pela visão da fé pura, a
cruz que carregamos, muito embora tudo esteja em guerra e estado de alarme na
parte inferior, que geme, se queixa, chora e procura lenitivo, de tal sorte que
se possa dizer, como Jesus Cristo: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a
minha!” ou, com a Santíssima Virgem: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em
mim segundo a Vossa palavra!” É com um desses dois amores da parte superior que
devemos amar e aceitar a cruz.
Sofrer toda sorte de cruzes, sem exceção e sem escolha.
[54] 10º: Decidi-vos, queridos Amigos da Cruz, a sofrer toda sorte
de cruzes, sem exceção e sem escolha: toda pobreza, toda injustiça, toda
humilhação, toda contradição, toda calúnia, toda aridez, todo abandono, toda
pena interior ou exterior, dizendo sempre: Meu coração está preparado, meu
Deus, meu coração está preparado (110). Preparai-vos, pois, para ser
abandonados pelos homens, pelos anjos e pelo próprio Deus; para ser
perseguidos, invejados, traídos, cluniados, desacreditados e abandonados por
todos; para sofrer fome, sede, mendicidade, nudez, exílio, prisão, tortura e
todos os suplícios, ainda que não os tenhais merecido pelos crimes que vos
impuserem (111). Imaginai enfim que, depois de ter perdido vossos bens e vossa
honra, de haver sido lançados para fora de vossa casa, como Jó e Santa Isabel,
rainha da Hungria, vos joguem na lama, como àquela santa, e vos arrastem por
sobre o estrume, como a Jó, todo purulento e coberto de úlceras, sem vos darem
ataduras para vossas chagas ou, para comerdes, um pedaço de pão que não
recusariam a um cavalo ou a um cão; e que, além desses males extremos, Deus vos
deixe à mercê de todas as tentações dos demônios, sem derramar sobre vossa alma
a mínima consolação sensível.
Crêde firmemente que esse é o ponto supremo da glória divina e a
felicidade perfeita de um verdadeiro e perfeito Amigo da Cruz (112).
Os quatro estimulantes do bom sofrimento.
[55] 11º: Para ajudar-vos a sofrer bem, tomai o santo hábito de
olhar quatro coisas:
NOTAS EXPLICATIVAS
(90) Axioma
bem conhecido dos antigos, aos quais se refere S. Paulo (Rom., 3, 8).
(91) Marc., 7, 37.
(92) Mat., 15, 14.
(93) (No original: “... des poules mouilées et des chiens morts”).
(94) Sl.,
50, 14.
(95) Lc.,
11, 13.
(96) Sl.,
50, 12.
(97) Sab.,
7, 14.
(98) Toda
esta alínea é um comentário sobre Tg., 5-6.
(99) I Pd.,
5, 6.
(100) I
cor., 1, 29.
(101) Num
trecho paralelo do “Tratado da verdadeira Devoção à Santíssima Virgem”,
Montfort atenuou esta declaração, acrescentando posteriormente esta útil
correção: “O pecado de nosso primeiro pai nos deixou a todos quase
inteiramente...corrompidos.”
(102) O
santo autor desmascara aqui o amor-próprio “que se insinua insensívelmente nas
melhores ações” (V. D., nº 146).
(103) Sl., 30, 21.
(104) II Cor., 12, 7.
(105) Cf. At., 8,9.
(106) Isto
é: aquelas, dentre as cruzes, que são pequenas e obscuras, se comparadas com as
grandes e muito visíveis.
(107)
Montfort compôs sobre este tema um belo cântico de vinte e duas estrofes,
intitulado “O pobre de espírito”. Os 2º e 4º versos de cada estrofe são,
invariavelmente: “Deus seja bendito! Deus seja bendito!” (Cânticos: 19º
Tradicional).
(108) Lc.,
22, 42.
(109) Sl.,
83, 3.
(110) Sl.,
107, 2;l Sl., 56, 8.
(111) Isto
é, que vos “imputarem”.
(112) Nestas
linhas sublimes, em que transparece a santa loucura da Cruz, não julgaríamos
estar a ouvir São Francisco de Assis dizendo ao Irmão Leão, diante do quadro
dos piores desprezados: “Aí está a perfeita alegria”?
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