II Parte
da publicação
Aos Amigos da Cruz
Introdução
Queridos Amigos da Cruz,
[1] Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz a palavra, não
me é possível - e nem mesmo o desejo - falar-vos para vos externar os
sentimentos do meu coração sobre a excelência e as práticas divinas de vossa
União na Cruz adorável de Jesus Cristo(1).
Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por assim dizer,
da atração do meu interior, para traçar neste papel alguns leves dardos da
Cruz, para com eles atravessar vossos corações. Prouvesse a Deus fosse
necessário, para acerá-los, o sangue de minhas veias em lugar da tinta de minha
pena! Mas, ai de mim! mesmo se ele fosse necessário, é por demais criminoso.
Que o Espírito do Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta;
que sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz seja minha pena e
o vosso coração meu papel!(2)
Primeira Parte
Excelência da União dos Amigos da
Cruz
Apelo à união dos espíritos e dos
corações.
[2] Estais reunidos, Amigos da Cruz, como outros tantos soldados
crucificados(3), para combater o mundo; não fugindo, como os religiosos e
religiosas, pelo medo de serdes vencidos; mas como valorosos e bravos
guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas.
Coragem! Combatei valentemente! Uni-vos fortemente pela união dos espíritos e
dos corações, infinitamente mais forte e mais temível ao mundo e ao inferno do
que o são, para os inimigos do Estado, as forças exteriores de um reino bem
unido. Os demônios se unem para perder-vos; uni-vos para derrotá-los. Os
avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e prata; uni vossos trabalhos
para conquistar os tesouros da eternidade, encerrados na Cruz. Os libertinos se
unem para divertir-se; uni-vos pra sofrer.
1° - Grandeza do Nome de Amigos
da Cruz
A) Este nome é grande e glorioso
[3] Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande esse nome!
Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais
elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais
magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem; é o nome inequívoco de um cristão.
B) Mas quantas obrigações encerra!
[4] Entretanto, se seu brilho me encanta, seu peso não me espanta
menos. Quantas obrigações indispensáveis e difíceis contidas neste nome e
expressas por estas palavras do Espírito Santo; “Genus electum, regale sacerdotium,
gens sancta, populus acquisitionis (4)”!
Um amigo da Cruz é um homem escolhido por Deus, entre dez mil que
vivem segundo os sentimentos e a razão, para ser unicamente um homem todo
divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentimentos, por uma
vida e uma luz de pura fé e por um amor ardente pela Cruz.
Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói triunfante do
demônio, do mundo e da carne em suas três concupiscências. Pelo amor às
humilhações, esmaga o orgulho de Satanás; pelo amor à pobreza, triunfa da
avareza do mundo; pelo amor à dor, amortece a sensualidade da carne.
Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado de todo o visível,
cujo coração está acima de tudo quanto é caduco e perecível, e cuja conversa
está no Céu (5); que passa pela terra como estrangeiro e peregrino; e que, sem
lhe dar o coração, a contempla com o olho esquerdo com indiferença,
calculando-a com desprezo aos pés (6).
Um Amigo da Cruz é uma ilustre conquista de Jesus Cristo
crucificado no Calvário, em união com sua Santa Mãe; é um Benoni ou um
Benjamin, filho da dor e da dextra (7), gerando em seu dolorido coração, vindo
ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu sangue.
Dada a sua extração sangrenta, só respira cruz, sangue e morte ao mundo, à
carne e ao pecado, para estar totalmente oculto, aqui na terra, com Jesus
Cristo em Deus (8).
Enfim, um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou
antes, um Jesus Cristo, de maneira que possa, em verdade, dizer: “Vivo, jam no
ego, vivit vero in me Christus: vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vive em
mim”(9)
Exame de consciência sobre essas obrigações.
[5] Sois, por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo
que vosso grande nome significa? Ou pelo menos, tendes verdadeiro desejo e
vontade verdadeira de assim vos tornares, com a graça de Deus, à sombra da Cruz
do Calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da
vida (10), que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem
o pensar, no caminho da perdição? Sabeis bem que há um caminho que parece ao
homem reto e seguro, e que conduz à morte?
[6] Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça da voz do mundo e
da natureza? Ouvís bem a voz de Deus, nosso Pai, que, depois de ter dado sua tríplice
maldição a todos os que seguem as concupiscências do mundo: vae, vae, vae
habitantibus in terra (11), grita-vos amorosamente, estendendo-vos os braços:
“Separamini, popule meus”(12). Separai-vos, meu povo escolhido, queridos Amigos
da Cruz de meu Filho; separai-vos dos mundanos, malditos por minha Majestade,
excomungados por meu Filho (13) e condenados pelo meu Espírito Santo (14).
Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais
os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (15). Fugi do meio da grande
e infame Babilônia (16); não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas que
não as de meu Filho bem amado, que vos dei para que fosse vosso caminho, vossa
verdade, vossa vida (17) e vosso modelo: “Ipsum audite”(18).
Ouvís o amável Jesus, que, carregando sua Cruz, vos grita: “Venite
post me: vinde após mim; o que me segue não anda em trevas (19); confidite, ego
vici mundum, tende confiança, eu venci o mundo (20)”?
2° - Os Dois Partidos
A) O partido de Jesus e do mundo
[7] Eis aqui, meus caros Confrades, eis aqui dois partidos (21)
que se defrontam todos os dias; o de Jesus Cristo e o do mundo.
O de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho
estreito e que assim cada vez se tornou devido à corrupção do mundo.
Caminha à frente o bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada
de espinhos, o corpo todo ensanguentado, e carregando uma pesada Cruz. Apenas
algumas pessoas, e das mais corajosas, o seguem, porque sua voz tão delicada
não se ouve no meio do tumulto do mundo; ou então, não se tem coragem para segui-lo
em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes, que necessariamente
é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.
[8] À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, que é mais
o numeroso, o mais significo e o mais brilhante, pelo menos na aparência. Todos
os indivíduos mais brilhantes correm para ele; apressam-se, apesar de serem os
caminhos largos, mais largos, do que nunca em virtude das multidões que por eles
passam como torrentes, e de estarem juncados de flores, marginados de prazeres
e divertimentos, cobertos de ouro e de prata (22).
B) Espírito totalmente oposto dos dois partidos.
[9] À direita, o rebanhosinho que segue a Jesus Cristo só fala em
lágrimas, em penitências, em orações e em desprezo do mundo; ouvem-se
continuamente estas palavras (23), entrecortadas de soluços: “Soframos,
choremos, jejuemos, oremos, ocultemo-nos, humilhemo-nos, empobreçamo-nos,
mortifiquemo-nos; porque o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um
espírito de cruz, não pertence a Ele; os que são de Jesus Cristo mortificaram a
carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme à imagem de Jesus
Cristo (24) ou condenar-se. Coragem! exclamam eles. Coragem! Se Deus está por
nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós é mais forte que o que está
no mundo. O servo não é maior que o senhor. Um momento de leve tribulação
redunda em peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os
corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém será lá coroado
se não houver combatido legitimamente, segundo o Evangelho, e não segundo a
moda. Combatamos, pois, vigorosamente, corramos depressa para atingir a meta, a
fim de ganharmos a coroa!” Eis uma parte das palavras divinas com que os Amigos da Cruz mutuamente se animam.
[10] Os mundanos, ao contrário, gritam todos os dias, para
animar-se a perseverar em sua malícia sem escrúpulos (25) “Vida, vida! Paz,
paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é
bom, Deus não nos fez para que nos danássemos; Deus não proíbe que nos
divirtamos; Não nos danaremos por isso. Nada de escrúpulos! Non moriemini.
etc...”
C) Amoroso apelo de Jesus
[11] Lembrai-vos, meus caros Confrades, que nosso bom Jesus nos
olha neste instante e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos
me abandonaram no caminho real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha cruz
como de uma loucura, os Judeus obstinados se escandalizam (26) com ela, como se
fosse objeto de horror, os hereges quebraram-na e derrubaram-na como coisa
digna de desprezo. Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o
coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em
minha escola, os meus membros, que animei com meu espírito, me abandonaram e
desprezaram, tornando-se inimigos de minha cruz! (27) - Numquid et vos vultis
abire?(28) Quereis, vós também, abandonar-me, fugindo da minha Cruz, como os
mundanos, que nisto são outros tantos anticristos: antichristi multi? (29)
Quereis enfim, conformar-vos ao século presente (30), desprezar a pobreza de
minha Cruz, para correr após as riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para
procurar aos prazeres? Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar as
honras? Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, e
que, no fundo, me odeiam, pois não amam minha Cruz; muitos amigos de minha mesa
e pouquíssimos amigos de minha Cruz (31)
[12] A este apelo amoroso de Jesus, elevamos acima de nós mesmos;
não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o
autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado (32), fujamos da corrupção da
concupiscência do mundo (33) corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira,
isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis
palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã:
“Si quis vult venire post me, abneget semetpsum, et tollat crucem suam, et
sequatur me! (34)
NOTAS
EXPLICATIVAS
(1) Este
primeiro parágrafo foi retirado do manuscrito do R.P., Besnard. As duas expressões
“a excelência” e “as práticas” anunciam imediatamente a intenção do apóstolo,
bem como as “duas partes” da carta que escreve aos seus queridos Amigos da
Cruz, dada a impossibilidade de falar-lhes. Como bom filósofo, dir-lhes-á,
antes de mais nada, o que são pela graça de Deus, a fim de levá-los a agir como
verdadeiros Amigos da Cruz. - Que este vocábulo não amedronte o leitor! -
“É este,
dirá Montfort, o nome inequívoco de um cristão”. Dirige-se ele, com efeito, a
cristãos que compreenderam a grandeza de sua vocação e a ela querem conformar
sua vida. A “Carta” tem como fim único ajudá-los a compreender melhor e a
melhor viver o programa da perfeição cristã. Possa ela ainda achar, em nossos
dias, numerosos leitores ávidos de realizar a verdade de seu cristianismo! As
próprias almas consagradas, apesar de esta “Carta” não ter sido escrita em sua
intenção, poderão nela alimentar seu fervor.
(2) - Que
confiança inspira o escritor que emprega tal linguagem!
(3) Hoje
falaríamos cruzados. Essa idéia de cruzada obceca a grande alma de Montfort
(cfr. “O Segredo admirável do Santo Rosário” e a “Oração abrasada”,
principalmente nas últimas páginas).
(4) Sois uma
raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo que Deus formou”(I
Pedro, 2-9). Estas palavras inspiradas, que caracterizam o povo cristão em sua
sublime vocação, Montfort as aplica especialmente a essa elite que seus
discípulos devem constituir. “Na literatura espiritual poucas páginas tem tanto
brilho quanto aquela em que ele se esforça para definir o que é um Amigo da
Cruz”. (Mons. Villepelet, bispo de Nantes”. “Carta de Quaresma”, 1942).
(5) Fil., 3,
20.
(6)
Montfort, tal como São Francisco de Assis, tinha um coração apaixonado pela
beleza e, em sua gruta de Mervent, cantou deliciosamente a natureza. Não
prende, porém, a ela a sua alma: ama-a tão somente na medida em que ela o eleva
a una a Deus.
(7)
Aplicação de dois nomes dados ao último filho do Patriarca: um por sua mãe
Raquel, outro por seu pai Jacó (Gen., 35, 18).
(8) Estais
mortos, com efeito, e vossa vida é toda oculta em Deus com Jesus Cristo (Col.,
3, 3).
(9) Gal.,
2,20.
(10) Prov.,
6, 23, 10, 17, 15, 10; Jer., 21, 8.
(11)
Maldição, maldição, maldição aos habitantes da terra... (Apoc., 8, 13).
(12) Is.,
48, 20; 52, 51; Jer., 50, 8; 51, 6, 9, 45; Apoc., 48, 4.
(13) “Não
peço pelo mundo..” (Jo., 17-9)
(14) Ele
convencerá o mundo do pecado, da justiça e do julgamento (Jo., 16, 8-12).
(15)
Comparai o Salmo 1, 1: “Feliz o homem que não anda segundo o conselho dos maus
e que não permanece no caminho dos pecadores, nem se senta nunca no lugar de
corrupção”.
(16) Is., 48, 20; Jer., 51, 6.
(17) Jo., 14,6.
(18) Mat., 17, 5; Luc., 9,35; Mrc., 9, 6; II Ped., I, 17.
(19) Jo., 8,
12.
(20) Jo.,
16, 33.
(21) Estas páginas comovente sobre os dois partidos - o de Jesus
Cristo e do Mundo - evocam, em paralelo, a meditação dos dois estandartes, dos
Exercícios espirituais. Santo Inácio e São Luís Maria pregam, cada um à sua
maneira, a necessidade de tomar partido, ou por Jesus, ou por Satanás, príncipe
deste mundo.
(22) Este quadro dos dois partidos é o comentário exato da lição
do divino Mestre: “O caminho que conduz à perdição é espaçoso e são numerosos
os que nele entram. A via que conduz à vida ... é estreita, e pequeno é o
número dos que a encontram” (Mat., VII. 13,14)
(23) Esta palavras dos discíspulos de Jesus são quase todas
tiradas dos livros santos. Ver particularmente Rom., 8, 9; Gal., 5, 24; Rom.,
7, 29-31; II Cor., 4, 17; Jo., 13, 16; 25, 20; Mat., 20, 16; Luc., 13, 23;
Mat., 11, 12; III Tim., 2, 5; I Cor., 9, 24-25.
(24) São Paulo (Rom., 8, 29) estabelece, com efeito, a
predestinação dos fiéis na conformidade à imagem do Filho de Deus. Os
comentadores modernos o entendem geralmente quanto ao estado de glória; é
mistér, entretanto, não esquecer que o estado de glória é o coroamento do
estado de graça, e é , para cada um, proporcional a este último.
(25) Os sentimentos dos mundanos aqui revelados foram igualmente
tirados da Sagrada Escritura: Is., 22, 13; Jer., 6, 14; 8, 11; Cor., 15, 32;
Gen., III, l.
(27) Cf. Is., 1, 2; Fil., 3, 18.
(28) Jo., 6, 68.
(29) I Jo., 2, 12.
(30) Rom., 12, 2 .
(31) Estas palavras resumem o belo capítulo da “Imitação de
Cristo” que tem por título: “Do pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus
Cristo” (liv. II, cap. XI).
(32) Hebr., 12, 2.
(33) II Ped., 1, 4.
(34) Mat., 16, 24; Luc., 9, 23. “Se alguém quiser vir após mim,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga!” A partir deste ponto, tôda a
“Carta”é o comentário deste programa de perfeição cristã, proposto pelo Divino
Mestre a todos os seus discípulos: convocata turba (Marc. 8, 34) ad omnes ...
(Luc., ibid). O parágrafo seguinte nos fornece a divisão deste impressionante
comentário.
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