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segunda-feira, 16 de setembro de 2013

II Parte - Carta aos Amigos da Cruz de São Luís Maria de Montfort

II Parte
da publicação

Aos Amigos da Cruz

Introdução

Queridos Amigos da Cruz,

[1] Já que a divina Cruz me esconde e me interdiz a palavra, não me é possível - e nem mesmo o desejo - falar-vos para vos externar os sentimentos do meu coração sobre a excelência e as práticas divinas de vossa União na Cruz adorável de Jesus Cristo(1).

Hoje, entretanto, último dia de meu retiro, saio, por assim dizer, da atração do meu interior, para traçar neste papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles atravessar vossos corações. Prouvesse a Deus fosse necessário, para acerá-los, o sangue de minhas veias em lugar da tinta de minha pena! Mas, ai de mim! mesmo se ele fosse necessário, é por demais criminoso. Que o Espírito do Deus vivo seja, pois, a vida, a força e o teor desta carta; que sua unção seja a tinta de meu tinteiro; que a divina Cruz seja minha pena e o vosso coração meu papel!(2)

 Primeira Parte

Excelência da União dos Amigos da Cruz

Apelo à união dos espíritos e dos corações.

[2] Estais reunidos, Amigos da Cruz, como outros tantos soldados crucificados(3), para combater o mundo; não fugindo, como os religiosos e religiosas, pelo medo de serdes vencidos; mas como valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem voltar as costas. Coragem! Combatei valentemente! Uni-vos fortemente pela união dos espíritos e dos corações, infinitamente mais forte e mais temível ao mundo e ao inferno do que o são, para os inimigos do Estado, as forças exteriores de um reino bem unido. Os demônios se unem para perder-vos; uni-vos para derrotá-los. Os avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e prata; uni vossos trabalhos para conquistar os tesouros da eternidade, encerrados na Cruz. Os libertinos se unem para divertir-se; uni-vos pra sofrer.

1° - Grandeza do Nome de Amigos da Cruz

A) Este nome é grande e glorioso

[3] Chamai-vos Amigos da Cruz. Como é grande esse nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande nome de Jesus Cristo, ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem; é o nome inequívoco de um cristão.

B) Mas quantas obrigações encerra!

[4] Entretanto, se seu brilho me encanta, seu peso não me espanta menos. Quantas obrigações indispensáveis e difíceis contidas neste nome e expressas por estas palavras do Espírito Santo; “Genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus acquisitionis (4)”!

Um amigo da Cruz é um homem escolhido por Deus, entre dez mil que vivem segundo os sentimentos e a razão, para ser unicamente um homem todo divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentimentos, por uma vida e uma luz de pura fé e por um amor ardente pela Cruz.

Um Amigo da Cruz é um rei todo poderoso e um herói triunfante do demônio, do mundo e da carne em suas três concupiscências. Pelo amor às humilhações, esmaga o orgulho de Satanás; pelo amor à pobreza, triunfa da avareza do mundo; pelo amor à dor, amortece a sensualidade da carne.

Um Amigo da Cruz é um homem santo e separado de todo o visível, cujo coração está acima de tudo quanto é caduco e perecível, e cuja conversa está no Céu (5); que passa pela terra como estrangeiro e peregrino; e que, sem lhe dar o coração, a contempla com o olho esquerdo com indiferença, calculando-a com desprezo  aos pés (6).

Um Amigo da Cruz é uma ilustre conquista de Jesus Cristo crucificado no Calvário, em união com sua Santa Mãe; é um Benoni ou um Benjamin, filho da dor e da dextra (7), gerando em seu dolorido coração, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto da púrpura de seu sangue. Dada a sua extração sangrenta, só respira cruz, sangue e morte ao mundo, à carne e ao pecado, para estar totalmente oculto, aqui na terra, com Jesus Cristo em Deus (8).

Enfim, um perfeito Amigo da Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou antes, um Jesus Cristo, de maneira que possa, em verdade, dizer: “Vivo, jam no ego, vivit vero in me Christus: vivo, mas não eu, é Jesus Cristo que vive em mim”(9)

Exame de consciência sobre essas obrigações.


[5] Sois, por vossas ações, meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que vosso grande nome significa? Ou pelo menos, tendes verdadeiro desejo e vontade verdadeira de assim vos tornares, com a graça de Deus, à sombra da Cruz do Calvário e de Nossa Senhora da Piedade? Entrastes no verdadeiro caminho da vida (10), que é o caminho estreito e espinhoso do Calvário? Não estareis, sem o pensar, no caminho da perdição? Sabeis bem que há um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à morte?

[6] Distinguis bem a voz de Deus e de sua graça da voz do mundo e da natureza? Ouvís bem a voz de Deus, nosso Pai, que, depois de ter dado sua tríplice maldição a todos os que seguem as concupiscências do mundo: vae, vae, vae habitantibus in terra (11), grita-vos amorosamente, estendendo-vos os braços: “Separamini, popule meus”(12). Separai-vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu Filho; separai-vos dos mundanos, malditos por minha Majestade, excomungados por meu Filho (13) e condenados pelo meu Espírito Santo (14). Tomai cuidado para não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos, nem mesmo pareis em seu caminho (15). Fugi do meio da grande e infame Babilônia (16); não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas que não as de meu Filho bem amado, que vos dei para que fosse vosso caminho, vossa verdade, vossa vida (17) e vosso modelo: “Ipsum audite”(18).

Ouvís o amável Jesus, que, carregando sua Cruz, vos grita: “Venite post me: vinde após mim; o que me segue não anda em trevas (19); confidite, ego vici mundum, tende confiança, eu venci o mundo (20)”?


2° - Os Dois Partidos

A) O partido de Jesus e do mundo

[7] Eis aqui, meus caros Confrades, eis aqui dois partidos (21) que se defrontam todos os dias; o de Jesus Cristo e o do mundo.

O de nosso amável Salvador está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez se tornou devido à corrupção do mundo.

Caminha à frente o bom Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo ensanguentado, e carregando uma pesada Cruz. Apenas algumas pessoas, e das mais corajosas, o seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no meio do tumulto do mundo; ou então, não se tem coragem para segui-lo em sua pobreza, suas dores, suas humilhações e suas outras cruzes, que necessariamente é preciso carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.

[8] À esquerda está o partido do mundo, ou do demônio, que é mais o numeroso, o mais significo e o mais brilhante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm para ele; apressam-se, apesar de serem os caminhos largos, mais largos, do que nunca em virtude das multidões que por eles passam como torrentes, e de estarem juncados de flores, marginados de prazeres e divertimentos, cobertos de ouro e de prata (22).

B) Espírito totalmente oposto dos dois partidos.

[9] À direita, o rebanhosinho que segue a Jesus Cristo só fala em lágrimas, em penitências, em orações e em desprezo do mundo; ouvem-se continuamente estas palavras (23), entrecortadas de soluços: “Soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo-nos, humilhemo-nos, empobreçamo-nos, mortifiquemo-nos; porque o que não tem o espírito de Jesus Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele; os que são de Jesus Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme à imagem de Jesus Cristo (24) ou condenar-se. Coragem! exclamam eles. Coragem! Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós é mais forte que o que está no mundo. O servo não é maior que o senhor. Um momento de leve tribulação redunda em peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém será lá coroado se não houver combatido legitimamente, segundo o Evangelho, e não segundo a moda. Combatamos, pois, vigorosamente, corramos depressa para atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa!” Eis uma parte das palavras divinas com que os  Amigos da Cruz mutuamente se animam.

[10] Os mundanos, ao contrário, gritam todos os dias, para animar-se a perseverar em sua malícia sem escrúpulos (25) “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos, cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para que nos danássemos; Deus não proíbe que nos divirtamos; Não nos danaremos por isso. Nada de escrúpulos! Non moriemini. etc...”

C) Amoroso apelo de Jesus

[11] Lembrai-vos, meus caros Confrades, que nosso bom Jesus nos olha neste instante e diz a cada um de vós em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz. Os idólatras cegos zombam de minha cruz como de uma loucura, os Judeus obstinados se escandalizam (26) com ela, como se fosse objeto de horror, os hereges quebraram-na e derrubaram-na como coisa digna de desprezo. Mas, e isto só posso dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que animei com meu espírito, me abandonaram e desprezaram, tornando-se inimigos de minha cruz! (27) - Numquid et vos vultis abire?(28) Quereis, vós também, abandonar-me, fugindo da minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros tantos anticristos: antichristi multi? (29) Quereis enfim, conformar-vos ao século presente (30), desprezar a pobreza de minha Cruz, para correr após as riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para procurar aos prazeres? Odiar as humilhações de minha Cruz, para ambicionar as honras? Tenho, na aparência, muitos amigos que me fazem protestos de amor, e que, no fundo, me odeiam, pois não amam minha Cruz; muitos amigos de minha mesa e pouquíssimos amigos de minha Cruz (31)

[12] A este apelo amoroso de Jesus, elevamos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus crucificado (32), fujamos da corrupção da concupiscência do mundo (33) corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: “Si quis vult venire post me, abneget semetpsum, et tollat crucem suam, et sequatur me! (34)


NOTAS EXPLICATIVAS

(1) Este primeiro parágrafo foi retirado do manuscrito do R.P., Besnard. As duas expressões “a excelência” e “as práticas” anunciam imediatamente a intenção do apóstolo, bem como as “duas partes” da carta que escreve aos seus queridos Amigos da Cruz, dada a impossibilidade de falar-lhes. Como bom filósofo, dir-lhes-á, antes de mais nada, o que são pela graça de Deus, a fim de levá-los a agir como verdadeiros Amigos da Cruz. - Que este vocábulo não amedronte o leitor! -
                      
“É este, dirá Montfort, o nome inequívoco de um cristão”. Dirige-se ele, com efeito, a cristãos que compreenderam a grandeza de sua vocação e a ela querem conformar sua vida. A “Carta” tem como fim único ajudá-los a compreender melhor e a melhor viver o programa da perfeição cristã. Possa ela ainda achar, em nossos dias, numerosos leitores ávidos de realizar a verdade de seu cristianismo! As próprias almas consagradas, apesar de esta “Carta” não ter sido escrita em sua intenção, poderão nela alimentar seu fervor.

(2) - Que confiança inspira o escritor que emprega tal linguagem!

(3) Hoje falaríamos cruzados. Essa idéia de cruzada obceca a grande alma de Montfort (cfr. “O Segredo admirável do Santo Rosário” e a “Oração abrasada”, principalmente nas últimas páginas).

(4) Sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo que Deus formou”(I Pedro, 2-9). Estas palavras inspiradas, que caracterizam o povo cristão em sua sublime vocação, Montfort as aplica especialmente a essa elite que seus discípulos devem constituir. “Na literatura espiritual poucas páginas tem tanto brilho quanto aquela em que ele se esforça para definir o que é um Amigo da Cruz”. (Mons. Villepelet, bispo de Nantes”. “Carta de Quaresma”, 1942).

(5) Fil., 3, 20.

(6) Montfort, tal como São Francisco de Assis, tinha um coração apaixonado pela beleza e, em sua gruta de Mervent, cantou deliciosamente a natureza. Não prende, porém, a ela a sua alma: ama-a tão somente na medida em que ela o eleva a una a Deus.

(7) Aplicação de dois nomes dados ao último filho do Patriarca: um por sua mãe Raquel, outro por seu pai Jacó (Gen., 35, 18).

(8) Estais mortos, com efeito, e vossa vida é toda oculta em Deus com Jesus Cristo (Col., 3, 3).

(9) Gal., 2,20.

(10) Prov., 6, 23, 10, 17, 15, 10; Jer., 21, 8.

(11) Maldição, maldição, maldição aos habitantes da terra... (Apoc., 8, 13).

(12) Is., 48, 20; 52, 51; Jer., 50, 8; 51, 6, 9, 45; Apoc., 48, 4.

(13) “Não peço pelo mundo..” (Jo., 17-9)

(14) Ele convencerá o mundo do pecado, da justiça e do julgamento (Jo., 16, 8-12).

(15) Comparai o Salmo 1, 1: “Feliz o homem que não anda segundo o conselho dos maus e que não permanece no caminho dos pecadores, nem se senta nunca no lugar de corrupção”.

(16) Is., 48, 20; Jer., 51, 6.

(17) Jo., 14,6.

(18) Mat., 17, 5; Luc., 9,35; Mrc., 9, 6; II Ped., I, 17.

(19) Jo., 8, 12.

(20) Jo., 16, 33.

(21) Estas páginas comovente sobre os dois partidos - o de Jesus Cristo e do Mundo - evocam, em paralelo, a meditação dos dois estandartes, dos Exercícios espirituais. Santo Inácio e São Luís Maria pregam, cada um à sua maneira, a necessidade de tomar partido, ou por Jesus, ou por Satanás, príncipe deste mundo.

(22) Este quadro dos dois partidos é o comentário exato da lição do divino Mestre: “O caminho que conduz à perdição é espaçoso e são numerosos os que nele entram. A via que conduz à vida ... é estreita, e pequeno é o número dos que a encontram” (Mat., VII. 13,14)

(23) Esta palavras dos discíspulos de Jesus são quase todas tiradas dos livros santos. Ver particularmente Rom., 8, 9; Gal., 5, 24; Rom., 7, 29-31; II Cor., 4, 17; Jo., 13, 16; 25, 20; Mat., 20, 16; Luc., 13, 23; Mat., 11, 12; III Tim., 2, 5; I Cor., 9, 24-25.

(24) São Paulo (Rom., 8, 29) estabelece, com efeito, a predestinação dos fiéis na conformidade à imagem do Filho de Deus. Os comentadores modernos o entendem geralmente quanto ao estado de glória; é mistér, entretanto, não esquecer que o estado de glória é o coroamento do estado de graça, e é , para cada um, proporcional a este último.

(25) Os sentimentos dos mundanos aqui revelados foram igualmente tirados da Sagrada Escritura: Is., 22, 13; Jer., 6, 14; 8, 11; Cor., 15, 32; Gen., III, l.

(27) Cf. Is., 1, 2; Fil., 3, 18.

(28) Jo., 6, 68.

(29) I Jo., 2, 12.

(30) Rom., 12, 2 .

(31) Estas palavras resumem o belo capítulo da “Imitação de Cristo” que tem por título: “Do pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus Cristo” (liv. II, cap. XI).

(32) Hebr., 12, 2.

(33) II Ped., 1, 4.

(34) Mat., 16, 24; Luc., 9, 23. “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga!” A partir deste ponto, tôda a “Carta”é o comentário deste programa de perfeição cristã, proposto pelo Divino Mestre a todos os seus discípulos: convocata turba (Marc. 8, 34) ad omnes ... (Luc., ibid). O parágrafo seguinte nos fornece a divisão deste impressionante comentário.



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