As lições espirituais das aparições
Pio XII |
Mas poderia a Mãe de Deus vir a seus filhos senão
como mensageira de perdão e de esperança? Já a água lhe jorra aos pés:
"Omnes sitientes, venite ad aquas, et haurietis salutem a Domino".
Àquela fonte onde, dócil, Bernadette foi a primeira a ir beber e lavar-se,
afluirão todas as misérias da alma e do corpo. "Lá fui, lavei-me e
vi", poderá responder, como o cego do Evangelho o peregrino agradecido.
Mas, tal como para as turbas que se comprimiam em volta de Jesus, a cura das
chagas físicas ali fica sendo, ao mesmo tempo que um gesto de misericórdia, o
sinal do poder que o Filho do Homem tem de perdoar os pecados. Junto à gruta
bendita, a Virgem nos convida, em nome de seu divino Filho, à conversão do
coração e à esperança do perdão. Escutá-la-emos?
Enveredar pela trilha que Nossa Senhora nos traçou
Nessa humilde resposta do homem que se reconhece
pecador reside a verdadeira grandeza desse ano jubilar. Que benefícios não
estaríamos no direito de esperar para a Igreja se cada peregrino de Lourdes - e
mesmo todo cristão unido de coração às celebrações do Centenário - realizasse
primeiramente em si mesmo essa obra de santificação, "não em palavras e de
língua, mas em atos e em verdade"? Tudo, aliás, a isso ali o convida, pois
em parte alguma, talvez, tanto quanto em Lourdes, a gente se sente levado ao
mesmo tempo à oração, ao esquecimento de si e à caridade. A vermos a dedicação
dos padioleiros e a paz serena dos doentes; a verificarmos a fraternidade que
congrega numa mesma invocação fiéis de todas as origens; a observarmos a
espontaneidade do auxílio mútuo e o fervor, sem afetação, dos peregrinos
ajoelhados diante da gruta, os melhores são empolgados pelo atrativo de uma
vida mais totalmente dada ao serviço de Deus e de seus irmãos; os menos
fervorosos tomam consciência da sua tibieza e reencontram o caminho da oração:
não raras vezes os pecadores mais empedernidos e os próprios incrédulos são
tocados pela graça, ou, ao menos, se são leais, não ficam insensíveis ao
testemunho daquela "multidão de crentes que têm um só coração e uma só
alma".
Geralmente entretanto, essa experiência de alguns
breves dias de peregrinação não basta, por si só, para gravar em caracteres
indeléveis o apelo de Maria e uma autêntica conversão espiritual. Por isto
exortamos os pastores das dioceses e todos os sacerdotes a rivalizarem em zelo
para que as peregrinações do Centenário se beneficiem de uma preparação, de uma
realização e sobretudo de amanhãs tanto quanto possível propícios a uma ação
profunda e duradoura da graça. O retorno a uma prática assídua dos sacramentos
o respeito da moral cristã em toda a vida, o ingresso, enfim, nas fileiras da
Ação Católica e das diversas obras recomendadas pela Igreja: somente nestas
condições o movimento de multidões dará, segundo a própria expectativa da
Virgem Imaculada, os frutos de salvação tão necessários à humanidade presente.
Ora, o mundo, que tantos e tão justos motivos de
ufania e de esperança oferece nos nossos dias, conhece tambem uma terrível
tentação de materialismo muitas vezes denunciado pelos nossos predecessores e
por Nós, mesmo. Esse materialismo não está somente na filosofia condenada que
preside à política e à economia de uma porção da humanidade; manifesta-se
também no amor do dinheiro, cujas devastações se amplificam à medida dos
empreendimentos modernos, e que, ai! comanda tantas determinações que pesam
sobre a vida dos povos; traduz-se pelo culto do corpo, pela procura excessiva
do conforto e pela fuga de toda austeridade de vida; conduz ao desprezo da vida
humana, daquela, mesmo, que é destruída antes de ver a luz; está na demanda
desenfreada do prazer, que se ostenta sem pudor e que mesmo, pelas leituras e
pelos espetáculos, tenta seduzir almas ainda puras; está na indiferença para
com seu irmão, no egoísmo que o esmaga, na injustiça que o priva dos seus
direitos, numa palavra; nessa concepção da vida que regula tudo, em vista
somente da prosperidade material e das satisfações terrenas.
A uma sociedade que, na sua vida pública, não raras
vezes contesta os direitos supremos de Deus, que queria ganhar o universo ao
preço de sua alma e que assim correria à sua perdição, a Virgem maternal lançou
como que um brado de alarma. Atentos ao seu apelo, ousem os sacerdotes pregar a
todos, sem temor, as grandes verdades da salvação. Com efeito, não há renovação
durável senão fundada nos princípios intangíveis da fé, e pertence aos
sacerdotes formar a consciência do povo cristão. Assim como, compassiva para
com as nossas misérias, mas clarividente sobre as nossas verdadeiras necessidades,
a Imaculada vem aos homens para lhes lembrar as diligências essenciais e
austeras da conversão religiosa, devem os ministros de Deus com sobrenatural
segurança, traçar às almas a estrada estreita que conduz à vida. Fá-lo-ão sem
se esquecer de que espírito de doçura e de paciência necessitam mas sem nada
quererem velar das exigências evangélicas. Na escola de Maria aprenderão a
viver só para dar Cristo ao mundo, mas, se também preciso, aprenderão a esperar
com fé a hora de Jesus e a permanecer ao pé da cruz.
Em torno aos seus sacerdotes, devem os fiéis
colaborar nesse esforço de renovação. Lá onde a Providência o colocou, quem é
que não pode fazer algo mais pela causa de Deus? O nosso pensamento volta-se
primeiro para a multidão de almas consagradas, que, na Igreja, se dedicam a
inúmeras obras de bem. Os seus votos de religião aplicam-nas mais do que outras
a lutar vitoriosamente, sob a égide de Maria, contra o desencadear, no mundo,
dos apetites imoderados de independência, de riqueza e de gozo; por isto, ante
o apelo da Imaculada, ao assalto do mal quererão elas opor-se pelas armas da
oração e da penitência e pelas vitórias da caridade.
O nosso pensamento volve-se igualmente para as
famílias cristãs, a fim de conjurá-las a permanecerem fiéis à sua
insubstituível missão na sociedade. Consagrem-se elas, nesse ano jubilar, ao
Coração Imaculado de Maria! Este ato de piedade será para os esposos um auxílio
espiritual precioso na prática dos deveres da castidade e da fidelidade
conjugal; conservará na sua pureza o ambiente do lar, onde crescem os filhos;
bem mais, da família vivificada pela sua devoção marial, fará uma célula viva
da regeneração social e da penetração apostólica. E certamente, para além do
círculo familiar, as relações profissionais e cívicas oferecem aos cristãos
cuidosos de trabalhar na renovação da sociedade, um campo de ação considerável.
Congregados aos pés da Virgem, dóceis às suas exortações, eles lançarão
primeiro sobre si mesmos um olhar exigente, e quererão extirpar da sua
consciência os juízos falsos e as reações egoístas, temendo a mentira de um
amor de Deus que não se traduza em amor efetivo de seus irmãos. Cristãos de
todas as classes e de todas as nações, procurarão eles encontrar-se na verdade
e na caridade, banir as incompreensões e as suspeitas. Sem dúvida, enorme é o
peso das estruturas sociais e das pressões econômicas que se faz sentir sobre a
boa vontade dos homens, e que não raro a paralisa. Mas, se, como nossos
predecessores e Nós mesmo com insistência o frisamos, é verdade que a questão
da paz social e política é, no homem, primeiramente uma questão moral, reforma
nenhuma é frutuosa, acordo algum é estável, sem uma mudança e uma purificação
dos corações. Lembra-o a todos a Virgem de Lourdes nesse ano jubilar!
E se, na sua solicitude, Maria se curva com alguma
predileção sobre certos de seus filhos, não é, Caros Filhos, sobre os pequenos,
sobre os pobres e sobre os doentes, os quais Jesus tanto amou? "Vinde a
mim vós todos que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei", parece
ela dizer com seu divino Filho. Ide a ela, vós a quem a miséria material
esmaga, vós sem defesa ante os rigores da vida e a indiferença dos homens; ide
a ela, vós a quem ferem os lutos e as provações morais; ide a ela, caros
doentes e enfermos, que em Lourdes sois verdadeiramente recebidos e honrados
como membros padecentes de Nosso Senhor; ide a ela, e recebei a paz do coração,
a força do dever cotidiano, a alegria do sacrifício oferecido. A Virgem Imaculada,
que conhece os encaminhamentos secretos da graça nas almas e o trabalho
silencioso desse fermento sobrenatural do mundo, sabe de que valor são aos
olhos de Deus os vossos sofrimentos unidos aos do Salvador. Podem eles
grandemente concorrer, disto não duvidamos, para essa renovação cristã da
sociedade que de Deus imploramos pela poderosa intercessão de sua Mãe. Que, a
rogo dos doentes, dos humildes, de todos os peregrinos de Lourdes, Maria volva
igualmente o seu olhar materno para aqueles que ainda permanecem fora do redil
único da Igreja, para os congregar na unidade! Lance o seu olhar sobre aqueles
que buscam a verdade e dela têm sede, para os conduzir à fonte das águas vivas!
Percorra, enfim, com o olhar esses continentes imensos e essas vastas zonas
humanas onde Cristo é tão pouco conhecido, tão pouco amado, e obtenha para a
Igreja a liberdade e a alegria de, em todos os lugares, sempre jovem, santa e
apostólica, corresponder à expectativa dos homens! (1).
(1) Carta Encíclica "Le Pèlerinage de Lourdes",
2 de julho, 1957.
Fonte: Pio XII e os problemas do mundo moderno, tradução e adaptação do Padre José Marins, 2.ª Edição, edições Melhoramentos.
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