Nota do blog: Agradecemos ao reverendíssimo Pe. Anderson Alves que
gentilmente nos cedeu esta publicação. Agradecemos também pelo pastor sempre
disponível e atento, que o senhor é. Rezamos sempre pela sua perseverança neste
caminho de santidade e humildemente nos colocamos a sua inteira disposição.
Pelo Reverendíssimo Pe.
Anderson Alves.
Escrito
em 25/09/2012.
Pe. Anderson Alves |
Recentemente veio à tona uma notícia surpreendente:
uma estudiosa da língua copta, Karen King, professora na Harvard Divinity School
divulgou num Congresso na Universidade La Sapienza de Roma um pequeno fragmento
de papiro (3,8 cm. X 7,6 cm.) proveniente do século IV do Egito, no qual se lê:
«E Jesus disse-lhes: a minha esposa». De modo inacreditável, a partir dessas
palavras, alguns concluíram que Jesus Cristo foi casado (talvez com Maria
Madalena), algo que contraria os Evangelhos (escritos na Palestina
aproximadamente 20 anos depois da morte dele) e a razão de muita gente. De
fato, como saber com certeza se aquele texto de origem desconhecida se refere
mesmo a Jesus Cristo e não a um dos milhares de “Jesus” que existiram entre o
século I e IV? Além disso, a própria Bíblia usa a linguagem matrimonial para
falar da união de Cristo e da Igreja (Ef. 5). Não seria possível que aquela frase
(caso fosse realmente de Jesus Cristo) estivesse se referindo à Igreja, a
Esposa do Cordeiro (Ap. 21,9)?
Como consequência dessa extraordinária
“descoberta”, os meios de comunicação e muita gente séria (inclusive de dentro
da Igreja) começam novamente a debater sobre a obrigatoriedade do celibato
sacerdotal. E novamente começamos a escutar as afirmações de sempre: «o Novo
Testamento fala certamente do celibato e do casamento, mas nunca como um
mandamento, somente como conselho; de modo que seria lógico que os padres
pudessem também ter o direito de escolher entre o celibato ou não»; «Se o
celibato fosse opcional, certamente haveria mais vocações sacerdotais na
Igreja, e essa se apresentaria como mais moderna e adequada aos tempos atuais»;
«o celibato não é bíblico e nem é necessário; na verdade é uma invenção
posterior da Igreja, surgida muitos anos depois de Cristo; se o mesmo São
Pedro, o primeiro dos Apóstolos, foi casado, por que os padres não podem se
casar? Parece que não há nada que impeça a mudança dessa norma meramente
eclesiástica»; «No Oriente, os sacerdotes são casados, tanto os ortodoxos
quanto os católicos de rito oriental. Portanto o celibato não é necessário para
o sacerdócio»; «o celibato não é um dogma, mas apenas uma questão disciplinar e
por isso pode ser mudada pela autoridade da Igreja».
Essas afirmações são tão repetidas e, ao mesmo
tempo, rejeitadas pela Igreja que podemos desconfiar que essas não são mais do
que grandes superficialidades. Mas como responder a essas questões? Quais seriam
as razões do celibato? Possui origem bíblica? Poderia essa disciplina algum dia
mudar? Vamos afrontar aqui essas questões.
1.
O
ensinamento bíblico:
A primeira coisa a ser dita é que não há dúvidas
que Jesus Cristo falou explicitamente do celibato em sua pregação e Ele mesmo
viveu desse modo. Os Evangelhos dizem que ele foi chamado de «comilão e
beberrão», de «amigo dos publicanos e dos pecadores», mas jamais foi chamado de
luxurioso, de mulherengo. Numa ocasião os seus discípulos se surpreendem ao
vê-lo conversando a sós, perto de um poço, com uma mulher Samaritana. Isso
demonstra que seus discípulos jamais tiveram a menor suspeita da castidade
absoluta de Jesus. De fato, não há nenhum texto bíblico que sugira que Jesus
não fosse celibatário e nenhum texto “apócrifo”, nenhum escrito extra bíblico
dos primeiros séculos, que o afirme ou sugira. A descoberta recente ganhou a
atenção mediática exatamente porque é o primeiro texto relativamente antigo
(sec. IV d. C.) que parece sugerir essa possibilidade.
Jesus falou claramente sobre o celibato, justamente
depois de fazer um belíssimo discurso sobre a santidade e a indissolubilidade
do Matrimônio (Mt 19): «porque há eunucos que o são desde o ventre de suas
mães, há eunucos tornados tais pelas mãos dos homens e há eunucos que a si
mesmos se fizeram eunucos por amor do Reino dos céus. Quem puder compreender,
compreenda».
Naquela mesma ocasião, um jovem rico se apresentou
a Jesus querendo-lhe seguir. O Senhor então lhe apresentou as exigências
necessárias para fazê-lo e aquele jovem, que tinha muitos bens e que não queria
deixar nada, o abandonou triste. Imediatamente depois Pedro, comparando sua
vida com a daquele jovem, perguntou a Jesus: «Eis que nós deixamos tudo e te
seguimos». E ele então respondeu: «… todo aquele que por minha causa deixar
irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa
receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna».
Jesus mostra aqui aos seus Apóstolos o que
significa deixar «tudo» para segui-lo: inclui o deixar mulher e filhos. Então
aqui surge uma pergunta: então algum dos Apóstolos era casado? O texto parece
indicar que sim. De fato, São Pedro pelo menos era casado, pois os Evangelhos
contam que Jesus curou a sua sogra (Mt. 8, 14-15). Entretanto, é interessante
notar que aquela senhora, uma vez curada da sua grave febre, imediatamente se
levanta e começa a servir ao Senhor e aos doze Apóstolos. O texto bíblico não
fala nada sobre a esposa de Pedro (nem aqui, nem em lugar algum do N.T.). Não
foi essa que se colocou ao serviço de Jesus, coisa que seria mais lógico do que
uma mulher anciã e convalescente. Não há dúvidas, pois, de que a Bíblia sugere
que Pedro fosse viúvo naquela ocasião.
De qualquer modo, o celibato na vida da Igreja até
o Concílio de Trento (séc. XVI) foi entendido sempre em dois significados,
presente no Decreto de Graciano, uma síntese extraordinária da
legislação canônica feita no ano 1.140: a continentia clericorum se
refere ao dever dos ministros ordenados de não se casar ou de não usar dos
direitos matrimoniais de um casamento previamente contraído (in non
contrahendo matrimonio et in non utendo contracto). Isso quer dizer que,
efetivamente, no primeiro milênio da Igreja existiam padres casados, como as
mesmas Sagradas Escrituras nos falam (cfr. 1 Tim. e Tit). Mas a partir do
momento da Ordenação, do momento que o «eu» do sacerdote se une ao «eu» de
Cristo [i], os padres deveriam, a exemplo de Jesus e dos Apóstolos,
deixar tudo para segui-lo, o que implicava a renúncia à vida matrimonial. Para
seguir ao Senhor na vida sacerdotal, é necessário deixar tudo: «casa, pais,
irmãos, mulher, filhos, pelo reino de Deus».
O motivo pelo qual, nos primeiros séculos, houve
padres casados foi porque o matrimônio não era como é hoje, um consenso livre
entre duas pessoas, mas se fundava num contrato jurídico entre as famílias e o
Cristianismo surgiu dentro do Império Romano. De modo que no Cristianismo
primitivo era comum que houvesse pessoas casadas, devido a uma obrigação
jurídica, e celibatárias, «por causa de Cristo e do Reino dos Céus». E isso não
era uma obrigação exclusiva para os padres, mas sim uma escolha livre dos
cristãos, de homens e mulheres. De modo que na Igreja antiga os padres
provinham de três grupos diversos: dos celibatários que não eram legalmente casados,
dos monges, e dos homens casados legalmente, os quais, uma vez ordenados
diáconos, passavam a viver a continência absoluta.
E há outras figuras celibatárias na Bíblia?
Certamente sim. No Antigo Testamento os sacerdotes deviam viver a continência
no período em que eles prestavam serviço litúrgico no Templo. O sacerdócio em
Israel era ligado à tribo de Levi, que devia permanecer ao longo da História.
Por isso, cada sacerdote prestava o seu serviço num determinado período de
tempo. Em Israel o sacerdócio era hereditário e não o fruto de uma vocação e
escolha pessoal. De modo que para eles havia a obrigação do celibato nos
períodos em que serviam ao templo e no resto do tempo viviam seu matrimônio
normalmente. Além disso, no A.T. há a figura de Jeremias, sacerdote que
pretendia se casar com Judite, mas Deus lhe proibiu explicitamente como um
sinal profético ao povo de Israel (Jer. 16).
No Novo Testamento temos a figura de João Batista,
o precursor do Senhor que era, sem dúvidas, celibatário. Além dele, José e
Maria eram casados e não tiveram jamais uma relação sexual, pois é uma verdade
de fé que Maria foi virgem antes, durante e depois do parto e José foi o
protetor da virgindade de Maria. Mas a origem mesma do celibato na vida
eclesiástica é a vida de Jesus Cristo, ao qual se associaram os seus
Apóstolos. Não há nenhum texto bíblico que mencione as esposas dos
Apóstolos, nem algum sinal da existência dessas na tradição extra bíblica, nem
escrita, nem monumental. Os textos «apócrifos» da Antiguidade não falam nunca
das esposas de Jesus Cristo e dos seus Apóstolos e não há nenhuma tradição que
diga onde estejam enterradas essas mulheres, por exemplo. Certamente, se Jesus
e os Apóstolos tivessem sido casados, isso não teria sido pecado algum, pois o
casamento foi elevado por Jesus Cristo ao nível de Sacramento, de sinal sagrado
que simboliza a Aliança eterna e fiel entre Deus e a humanidade. Se não há
nenhum sinal na História das esposas de Jesus e dos Apóstolos é porque essas
jamais existiram.
São Paulo, que não pertencia ao grupo dos Doze
Apóstolos, mas que foi chamado posteriormente por Jesus a ser um «Apóstolo de
Cristo», fala também explicitamente do celibato, dizendo que não é um
mandamento do Senhor, mas ele queria que muitos cristãos fossem como ele. O fato
de que ele fosse celibatário, «Apóstolo» e um perfeito imitador de Cristo nos
mostra que o celibato era condição necessária para se abraçar o sacerdócio de
Cristo. De fato, o sacerdote diz todos os dias «Isso é o meu corpo entregue por
vós». Quem pensa seriamente nessas palavras compreende sem dificuldade alguma a
beleza e a exigência de se viver o celibato, entregando-se realmente ao próximo
como Cristo [ii].
Há ainda dois textos bíblicos utilizados como
argumento pelos que pretendem a abolição do celibato na Igreja. São 1 Tim 3,
1-5 e Tit. 1, 8-9, nos quais São Paulo enumera as qualidades do bispo.
1 Tim 3, 1-5: «Eis uma coisa certa: quem aspira ao
episcopado, saiba que está desejando uma função sublime. Porque o bispo tem o
dever de ser irrepreensível, casado uma só vez, sóbrio, prudente, regrado no
seu proceder, hospitaleiro, capaz de ensinar. Não deve ser dado a bebidas, nem
violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado; deve saber governar bem
a sua casa, educar os seus filhos na obediência e na castidade. Pois quem não
sabe governar a sua própria casa, como terá cuidado da Igreja de Deus?»
Tito 1, 8- «o bispo seja irrepreensível, como
administrador que é posto por Deus. Não arrogante, nem colérico, nem
intemperante, nem violento, nem cobiçoso. Ao contrário, seja hospitaleiro,
amigo do bem, prudente, justo, piedoso, continente (encratés),
firmemente apegado à doutrina da fé tal como foi ensinada, para poder exortar
segundo a sã doutrina e rebater os que a contradizem».
No primeiro deles se diz que o bispo dever ser
casado uma só vez (unius uxoris vir) e no segundo diz que o bispo de ver
ser continente (encratés), palavra usada na Igreja antiga e medieval
para se descrever o celibato sacerdotal. Como conciliar os dois textos?
Certamente, assim como a Tradição da Igreja o fez: o bispo que fosse casado
antes da sua Ordenação deveria se abster das relações sexuais com a sua esposa
ao ser admitido às sagradas Ordens. E isso está de acordo com os Evangelhos,
pois quem quer seguir de perto o Senhor deve deixar tudo, inclusive «mulher e
filhos», por causa dele e do Reino dos Céus. Assim foram interpretados esses
textos pelos cristãos desde o primeiro século, tanto no Oriente como no
Ocidente. A documentação sobre isso é abundante.
2.
O
celibato na Tradição da Igreja
Antes de tudo é preciso dizer que quem pensa que o
celibato é apenas uma lei disciplinar da Igreja, que poderia ser mudada a
qualquer momento, assume, talvez acriticamente, uma visão positivista do
Direito, como se as leis da Igreja fossem arbitrárias, provenientes apenas da
vontade do legislador ou do consenso humano e fossem totalmente desvinculadas
das verdades da fé (dogmas). Na verdade, a Igreja jamais teve uma visão
positivista do Direito, de modo que a lei foi sempre entendida como «uma
ordenação racional para o bem comum promulgada por quem dirige a comunidade»
(Santo Tomás de Aquino, S.Th. I-II, 90,4). As leis da Igreja
não podem jamais ser arbitrárias, mas são sempre racionais e tem como fonte a
Revelação. Recentemente o importante filósofo do Direito, Hans Kelsen bem
demonstrou que o Direito (ius) é diverso das leis (lex). O
Direito é toda norma obrigatória, transmitida inicialmente como tradição oral e
como costume e, posteriormente, essas normas são colocadas por escrito (lex).
Essa descrição é correta, válida tanto para as primeiras leis do Direito Romano
como para aquelas eclesiásticas, inclusive no que se refere ao celibato
apostólico. Esse foi antes de tudo vivido por Jesus Cristo, pelos Apóstolos
(seja na forma de continência perfeita, seja na abstinência das relações
sexuais depois da Ordenação) e seus sucessores: bispos, presbíteros e diáconos.
A primeira lei escrita sobre o celibato provém do
Concílio de Elvira (Córdoba – Espanha), no ano 300. Antes dessa época há poucos
documentos jurídicos da Igreja, devido ao período das perseguições. No ano 300
a Igreja contava com uma relativa paz na Espanha, o que possibilitou a
realização desse Concílio.
No Cânon 33, sob o título «sobre os bispos e
ministros (do altar), que devem ser continentes com suas esposas», lemos: «Se está de acordo sobre a proibição total, válida para bispos,
sacerdotes e diáconos, ou seja, para todos os clérigos dedicados ao serviço do
altar, que devem se abster de suas esposas e não gerar filhos; quem fizer isso
deve ser excluído do estado clerical». O cânon 27 insistia
também na proibição de que habitassem com os bispos e outros eclesiásticos,
outras mulheres não pertencentes à sua família. Só poderiam levar para junto de
si, uma irmã ou uma filha consagrada virgem, mas de nenhum modo uma estranha.
Essa lei não era uma novidade na vida da Igreja, pois
seria algo injusto e irracional. Uma lei desse tipo criada ex ninhil seria
uma grave injustiça e criaria justificáveis reações. Mas as disposições daquele
Concílio se referem a uma disciplina recebida de Cristo, dos Apóstolos, de seus
sucessores e que era algo vivido pelos clérigos. De modo que essa lei era uma
reação contra a infidelidade de alguns que naquela época desrespeitavam a
prática tradicional. Por isso o Concílio pôde estabelecer uma grave e justa
sanção a quem desobedecesse àquela lei: o afastamento do estado clerical. O
Papa Pio XI, na sua Encíclica sobre o sacerdócio, afirmou que essa primeira lei
escrita supunha uma práxis precedente, de origem apostólica.
Posteriormente encontramos duas cartas do Papa
Sirício, que respondia a algumas questões apresentadas ao seu predecessor. Na
carta Directa, do ano 385, o Papa disse que os sacerdotes e
diáconos que, depois da Ordenação, geram filhos, atuam contrariamente a uma lei irrenunciável, que
obriga aos clérigos maiores desde o início da Igreja. A apelação
ao fato de que no Antigo Testamento, os sacerdotes e levitas podiam ter
relações sexuais fora do tempo do seu serviço no Templo foi refutada pelo Novo
Testamento, no qual os clérigos devem prestar culto sagrado todos os dias; por
isso, a partir do dia da sua Ordenação, esses devem viver a continência
absoluta. E noutra carta do ano em 386 lemos: «os sacerdotes e levitas não
devem ter relações sexuais com suas esposas, porque devem estar ocupados
diariamente com o seu ministério sacerdotal».
Depois temos a disposição do importante Concílio
Africano do ano 390, que será posteriormente incluída no Código dos Cânones das
Igrejas Africanas. Sob o título: «que a castidade dos sacerdotes e levitas deve
ser protegida», o texto afirma: «O bispo Epigônio disse: “de acordo com aquilo
que o anterior Concílio afirmou sobre a continência e sobre a castidade, os
três graus que estão ligados pela Ordenação a uma determinada obrigação de
castidade, ou seja, bispos, sacerdotes e diáconos – devem ser instruídos de uma
forma mais completa sobre o seu cumprimento”. O bispo Genetlio continuou: “como
já mencionado, convém que os sagrados bispos, os sacerdotes de Deus e os
levitas, ou seja, aqueles que servem nos divinos sacramentos, sejam continentes
por completo, para que possam obter sem dificuldades o que pedem ao Senhor;
para que também protejamos o que os Apóstolos ensinaram e é conservado desde
antigamente”. A isso os bispos responderam unanimemente: “estamos todos de
acordo que bispos, sacerdotes e diáconos, guardiães da
castidade, se abstenham também de suas esposas, a fim de que em
tudo e por parte de todos os que sirvam ao altar seja conservada a castidade”».
Um dos principais motivos dados pela Igreja antiga
do celibato é que esse torna eficazes as orações dos sacerdotes. Eles se
baseiam no texto bíblico de São Paulo, o qual escrevia aos esposos cristãos:
«Não vos recuseis um ao outro, a não ser de comum acordo, por algum tempo, para
vos aplicardes à oração; e depois retornai novamente um para o outro, para que
não vos tente Satanás por vossa incontinência» (cfr. 1 Cor, 7, 3-6.). São Paulo
diz que os casados só podem abster-se das relações sexuais por certo tempo,
para se dedicarem à oração e assim essas seriam escutadas. Os Padres da Igreja
e os primeiros Papas argumentavam dizendo que os sacerdotes devem ser com mais
motivos castos, para se dedicarem à oração em favor do povo de Deus. Desse
modo, suas orações seriam mais eficazes; os padres que se esforçam por manter
intacto o próprio celibato e procuram rezar com perseverança pelo povo de Deus
podem comprovar a verdade desses ensinamentos diariamente.
Naquele mesmo texto, São Paulo recomendava a
virgindade aos outros cristãos, sem dizer que o casamento é pecaminoso. «Pois
quereria que todos fossem como eu; mas cada um tem de Deus um dom particular:
uns este, outros aquele. Aos solteiros e às viúvas, digo que lhes é bom se
permanecerem assim, como eu. Mas, se
não podem guardar a continência, casem-se. É melhor casar do que abrasar-se» (I
Cor. 7, 8-9). Não há dúvidas de que o celibato possui fundamentos bíblicos e a
disciplina eclesiástica se baseia na vida mesma de Cristo e dos seus Apóstolos,
dando origem assim ao que a tradição da Igreja chama de apostolica
vivendi forma[iii].
3.
A
diversa disciplina nas Igrejas orientais.
É frequente a afirmação de que na Igreja oriental o
celibato é opcional e os sacerdotes celebram validamente os Sacramentos, de
modo que a disciplina celibatária da Igreja latina poderia ser mudada em
qualquer momento. Mas qual é a razão da diversa disciplina oriental?
A Igreja Ortodoxa antiga era muito concentrada em
questões teológicas, talvez mais do que no Ocidente; porém as questões
disciplinares eram discutidas em cada região. De modo que na Igreja oriental
não havia a mesma firmeza disciplinar que havia no Ocidente, devido a gradual
separação disciplinar do Ocidente, a sua progressiva fragmentação e a
influência imperial. Por isso, os costumes e as leis disciplinares foram
progressivamente mudando naquela época.
Sendo assim, o Código Teodosiano (ano 434) dizia
que a continência pode ser guardada, mas permitia à mulher morar com o marido,
também depois da Ordenação; a legislação do Imperador Justiniano I em matéria
eclesiástica, tanto no Código (ano 534) quanto nas Novellae(535-536)
muda, em parte, a disciplina: mantém a proibição de se admitir na Ordem sagrada
aquele que se tivesse sido casado mais de uma vez, assim como a de casar-se
depois da Ordenação, e isto para todos os três graus da Ordem; porém, se
permitia aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos a coabitação com a esposa com o
fim de que pudessem continuar usando do matrimônio, sempre que tivesse sido
contraído uma só vez e com uma virgem.
Mas a mudança mais radical no Oriente, nessa
matéria, ocorreu no Concílio Trullano II, convocado pelo imperador Justiniano
II, no Outono de 690. Nele se tentou reunir toda a legislação disciplinar da
Igreja bizantina e se buscou fazer necessárias atualizações. O resultado desse trabalho
foi a promulgação de 102 cânones, que foram acrescentados mais tarde ao antigo Syntagma
adauctum, transformando-se no último Código da Igreja Bizantina. O dito
Concílio foi um evento particular da Igreja Bizantina, convocado e frequentado
somente por seus bispos e mantido pela sua autoridade, que se apoiava de modo
decisivo na autoridade do imperador. A Igreja Ocidental não enviou delegados e
nunca reconheceu este Concílio como ecumênico, apesar das repetidas tentativas
e pressões, especialmente por parte do imperador. O Papa da época era Sérgio
(687-701), procedia da Síria e negou o reconhecimento daquele evento. Mais
adiante, o Papa João VIII (872-882) só reconheceu as disposições que não eram
contrárias à prática de Roma em vigor até aquele momento.
A disciplina sobre o celibato decidida então é
válida ainda hoje nas Igrejas Orientais e diz que «todos os que depois do
Batismo tenham contraído um segundo matrimônio ou tenha vivido em concubinato,
bem como aqueles que se tinham casado com uma viúva, uma divorciada, uma
prostituta, uma escrava ou uma atriz, não poderiam tornar-se nem bispos, nem
sacerdotes, nem diáconos» (can. 3); «que aos sacerdotes e diáconos não estão
autorizados a se casar após a Ordenação» (can. 6); «os bispos não podem, após a
Ordenação, coabitar com sua esposa e, por conseguinte, não podem mais usar do
matrimônio» (can. 12); «… os sacerdotes, diáconos e subdiáconos da Igreja
oriental, em virtude de antigas prescrições apostólicas,podem conviver com suas esposas e usar dos direitos do casamento
para a perfeição e ordem correta, exceto nos tempos em que prestam o serviço no
altar e celebram os sagrados mistérios, devendo ser continentes
durante este tempo» (can. 13).
As decisões aqui são bem interessantes ao nosso
tema. Podemos ver que a Igreja oriental conserva para os bispos a mesma severa
disciplina sobre a continência que se praticou sempre em toda a Igreja. Não há
dúvidas de que essa lei pode ser considerada como um resíduo na legislação trullana da
tradição antiga, apostólica.
Por outro lado, não se compreende naquelas
disposições alguns pontos:
a)
Porque só se admite um único Matrimônio para os
padres casados; de fato, se esses ficam viúvos, não podem se casar com outra
mulher; ora, se os outros padres podem se casar livremente, por que os viúvos
não o podem? Quais seriam as justificativas teológicas dessa disposição?
b) A
proibição das relações sexuais dos sacerdotes com suas esposas nos dias em que
esses celebravam a Divina Liturgia (Missa), adotando assim uma
concepção de sacerdócio semelhante a do A.T. No início, o culto litúrgico na
Igreja oriental era feito somente nos domingos e em algum outro dia da semana.
Com o passar do tempo o culto passou a ser diário e era de se esperar que a
disciplina do celibato passasse a ser obrigatória sempre. Porém, ocorreu
exatamente o contrário.
No Oriente algumas Igrejas particulares que estavam
unidas à Bizantina se uniram posteriormente a Roma e lhes foi concedido poder
continuar a sua tradição celibatária diferente. Certamente o retorno desses à
comunhão com a Igreja latina foi uma grande alegria, porém, como disse o
cardeal A. Stickler, o reconhecimento da diversidade de disciplina pode ser
considerado como um nobre respeito, mas não como a aprovação oficial da mudança
da disciplina apostólica da continência absoluta.
Atualmente sabe-se que nas Igrejas orientais (assim
como nas provenientes da Reforma), onde não há mais a obrigação do celibato, há
uma grande crise de vocações. E essa crise de vocações lhes afeta inclusive na
hora de se designar um bispo para uma nova diocese, visto que os bispos devem
ser celibatários e que os sacerdotes deles, na maioria dos casos, são casados [iv]. Na Igreja Católica isso não ocorre. Costuma-se dizer que
a vocação ao episcopado é a única que não encontra crises na Igreja latina. Ao
mesmo tempo, percebe-se nos últimos anos um aumento constante no número de
Ordenações e de vocações sacerdotais, a nível global, apesar das dificuldades.
No mundo, em 2009 eram 410.593 sacerdotes, enquanto que em 1999 eram 405.000[v]. No Brasil o número de padres passou de 16.772 no ano
2.000 para 22.119 em 2.010 [vi]. Nos Sínodos de Bispos em Roma, os bispos das Igrejas
orientais sempre afirmam a beleza do dom do celibato, conservado na Igreja
Católica e, ao mesmo tempo, falam da crise de vocações que essas Igrejas sofrem
atualmente.
Outros dados interessantes: recentemente uma
pesquisa de uma importante Revista, a Forbes, mostrou que o
sacerdócio é a “profissão” na qual há uma maior taxa de felicidade entre os que
o abraçam [vii]. Por outro lado, sabe-se que, infelizmente, nos nossos
dias mais de 40% dos matrimônios se rompem, enquanto que por volta de 2% dos
padres abandonam a vida sacerdotal [viii]. É evidente que a solução para a crise de vocações para
o sacerdócio não é o matrimônio. Pois como bem notou o então cardeal J.
Ratzinger o que se percebe hoje não é somente a incapacidade de se viver o
celibato, mas sim a de se fazer qualquer tipo de escolha definitiva e de ser
coerente com a mesma. Hoje pode parecer que é impossível a fidelidade no
matrimônio, assim como ao celibato. E há quem proponha que o melhor modo para
que haja mais sacerdotes fiéis ao seu ministério (algo que parece ser
impossível) e dar-lhes o direito de viver algo que lhes parece ainda mais
impossível: o matrimônio. Não há dúvidas, pois, de que se fossem permitidos na
Igreja Católica padres casados, o próximo problema da Igreja seria o que fazer
com os padres divorciados, problema bem presente nas comunidades protestantes
tradicionais [ix].
Pode, pois, a disciplina da Igreja mudar? Por tudo
o que vimos, podemos concluir que é bem mais possível que se mude a disciplina
nas Igrejas orientais do que na Igreja Católica de rito latino, que mantém
intacta a tradição recebida por Jesus Cristo e pelos Apóstolos. Mas talvez haja
ainda quem insista e diga: «tudo bem, o celibato é bíblico e esteve sempre
presente na vida da Igreja. Mas não devia ser esse opcional, tal como diz São
Paulo?» A resposta que podemos dar a essa questão é uma só: o celibato na
Igreja Católica sempre foi opcional! Hoje como no passado, ninguém pode ser
obrigado a ser ordenado sacerdote, pois essa Ordenação seria inválida. Quem se
sente chamado e se decide a responder positivamente a Cristo, aceita tudo o que
essa decisão implica: inclusive o celibato. Ele é a pérola preciosa pela qual
vale a pena trocar todas as demais. Além disso, para alguém ser ordenado
sacerdote precisa ter ao menos 25 anos e ter passado no mínimo 5 anos de
preparação num Seminário para discernir se Deus lhe chamou para essa missão em
favor do povo de Deus. Um seminarista sabe, desde o primeiro dia seu no
Seminário, que sua vocação implica a luta por viver o celibato, que é antes um
dom de Deus. Quem escolhe de seguir a Cristo no sacerdócio, escolhe de lutar
por viver como Ele viveu, dando sua vida pelos outros. Como bem disse o Beato
João Paulo II na sua última carta aos sacerdotes, «as palavras da instituição
da Eucaristia devem ser, para nós, não apenas uma fórmula de consagração, mas
uma “fórmula de vida”» [x]. De modo que se Cristo foi o Esposo da Igreja (Ef. 5), se
Ele deu a sua vida por Ela, por que não devem fazer o mesmo aqueles que se unem
intimamente a Ele e agem in persona Christi?
Pe. Anderson Alves. Escrito em 25/09/2012.
Bibliografia:
CARD. A. STICKLER, Il
celibato ecclesiastico. La sua storia e i suoi fondamenti teologici, Libreria
editrice Vaticana, Roma: 1994. A tradução ao português é nossa e está
disponível em:
MAX THURIAN, Base teológica
do celibato sacerdotal. Disponível em:http://www.presbiteros.com.br/site/base-teologica-do-celibato-sacerdotal/
PAPA PIO XII, Carta Encíclica
Sacra Virginitas de 25/03/1954. Disponível em:http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_25031954_sacra-virginitas_po.html
PAPA BENTO XVI, Discurso Do
Papa Bento XVI aos Cardeais, Arcebispos, Bispos e Prelados Da Cúria Romana para
a Apresentação bos Bons Votos de Natal, em 22/12/2006. Disponível em:
IDEM, Vigília por ocasião do
encontro internacional de sacerdotes. Diálogo com os sacerdotes, em
10/06/2010. Disponível em:
[i] Cfr.
Papa Bento XVI, Vigília por ocasião do encontro internacional de
sacerdotes. diálogo do papa Bento XVI com os sacerdotes, em 10/06/2010.
Disponível em:http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2010/june/documents/hf_ben-xvi_spe_20100610_concl-anno-sac_po.html
[ii] Dizia
o então teólogo calvinista, M. THURIAN: «Cristo nunca se casou. Sua vida é
justificativa da vocação para o celibato. Jesus Cristo questiona as leis da
criação e da natureza; questiona a Lei da Antiga Aliança, que buscava
restabelecer a ordem na criação e na natureza, perturbada pelo pecado». «O
celibato é um desses sinais a nos recordar as exigências absolutas de Cristo,
seu retorno libertador, a economia do Reino do Céu, a necessidade de estar
vigilante, de romper com o mundo, com a carne, com a luxúria e de, com alegria
no coração, aceitar a renúncia às paixões pelo puro amor de Jesus». De modo
semelhante, disse um famoso teólogo protestante Karl Barth: «por que surpreender-nos
de que entre os seguidores de Jesus, e mais tarde na Igreja primitiva, e mais
tarde ainda, havia, ao que parece, homens que achavam razoável praticar essa
outra possibilidade (essa segunda vocação conhecida como celibato), homens para
quem fazer parte da Igreja e nela viver tomava definitivamente o lugar da união
conjugal e da vida de casado: não por hostilidade ao casamento entendido no
sentido da Carta aos Efésios 5, 31 – o casamento restaurado em toda a sua
dignidade – mas antes por causa dessa reavaliação do casamento e inspirados
diretamente no próprio exemplo de Jesus». Cfr. K. BARTH, Die kirchliche Dogmatic,
t. III, 6. p. 160. Cfr.: http://www.presbiteros.com.br/site/base-teologica-do-celibato-sacerdotal/
[iii] Cfr.
PAPA BENTO XVI, Discurso durante a audiência concedida à Congregação
para o Clero em 16/03/2009. Disponível em:http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2009/march/documents/hf_ben-xvi_spe_20090316_plenaria-clero_po.html
[iv] O
site da Igreja Ortodoxa de Buenos Aires explica muito bem a disciplina
celibatária hoje vigente, em substância, a mesma do “Concílio Trullano II” e
fala que atualmente são muito os padres “brancos”, ou seja, os que não fizeram
os votos monásticos, que optam pelo celibato. Também reconhecem a dificuldade
que se tem atualmente de se ordenar bispos ortodoxos. Cfr:http://www.ecclesia.com.br/biblioteca/igreja_ortodoxa/a_igreja_ortodoxa_fe_e_liturgia7.html#5
[v] Os
dados estatísticos da Igreja Católica podem ser vistos em:http://www.fides.org/aree/news/newsdet.php?idnews=31416&lan=por
[vi] Para
ver os dados recentes da Igreja no Brasil: http://www.news.va/pt/news/ibge-catolicos-ainda-sao-maioria-no-brasil-mas-aum
[vii] A
notícia pode ser vista nesse link:http://epocanegocios.globo.com/Revista/Common/0,,EMI284159-16418,00-AS+PROFISSOES+QUE+MAIS+TRAZEM+FELICIDADE+E+TRISTEZA.html
[viii] Essas
são as recentes afirmações do atual prefeito da Congregação para o Clero, Dom
Mauro Piacenza: http://www.comshalom.org/blog/carmadelio/26410-prefeito-da-congregacao-para-o-clero-reafirma-o-nao-ao-celibato-opcional-e-a-ordenacao-feminina
[ix] Cfr.
J. RATZINGER, O sal da terra: o Cristianismo e a Igreja Católica no
Limiar do Terceiro Milênio, Ed. Amago, São Paulo: 1997, pg. 156.
[x] Cfr.
JOÃO PAULO II, Carta aos Sacerdotes por Ocasião Da Quinta-Feira Santa de 2005.
Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/letters/2005/documents/hf_jp-ii_let_20050313_priests-holy-thursday_po.html
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