EU a atrairei docemente a
mim,
e a conduzirei à solidão, e
lhe falarei ao coração.
(Os., II, 14)
Por um cartuxo anônimo -
Intimidade com Deus
São Bruno, fundador dos Cartuxos |
Por mais que se pretenda exprimir a intenção que anima a vida dos cartuxos e
das suas religiosas, devemos fazê-lo nos termos mais simples. As nossas almas
são esposas de Jesus Cristo se respondermos à sua chamada: o nosso ideal é
fazê-lo e viver unicamente em união com Ele. Esforçamo-nos por atingir este fim
pela vida sacramental e litúrgica, pela oração, pela obediência, pela
mortificação e pelo esquecimento de nós próprios, na solidão e segundo os
costumes da Ordem cartuxa. Sabemos e sentimos, na medida em que Deus o
quer, que Ele está desejoso de completar sem demora esta união dos espíritos e
dos corações, desde que afastemos os obstáculos. Estes obstáculos reduzem-se a
um: o apego a nós próprios, de que só o amor divino nos pode libertar.
Esta definição é certamente elementar: muitos hão-de estranhar encontrar nela
tão pouca doutrina e tão poucas características específicas. Contudo, esta
simplicidade é necessária: é a primeira característica da espiritualidade
cartuxa, e lamentamos ter de explicar estas palavras, pois não acrescentaremos
nada à sua substância e receamos até enfraquecê-las com o comentário.
Os monges e religiosas cartuxas, ocupados em servir a Deus nos seus
eremitérios, nunca formaram uma escola nem se agruparam à volta do nome de um
mestre: não têm nenhum autor célebre cuja obra fixe as linhas do seu
desenvolvimento espiritual e lhe dê a forma que há-de ser depois imitada. Mas
não é só pela sobriedade das formulações teóricas que parece ter ficado
reservado um lugar para um impulso silencioso do espírito; a virgindade é uma
característica essencial da espiritualidade cartuxa: tudo, nesta Ordem, protege
a vida espontânea da alma e a reserva para Deus.
É este o sentido da solidão, - a que nós observamos - e que tanto impressiona
os estranhos. Abandonamo-nos a Deus e é unicamente d’Ele que nos esforçamos por
viver. Esta solidão, no seu aspecto social, é de resto suavizada pela regra:
mantemos entre nós relações de família, estamos unidos uns aos outros por uma
profunda amizade, como irmãos e irmãs da mesma ordem. No entanto, estas
relações e esta amizade só têm sentido na medida em que nos podem ajudar na
fidelidade à solidão, medindo-a pelas nossas forças, e pondo-a à prova para que
ela não perca o seu caráter sobrenatural. Estar só é, em certo sentido, morrer
para o homem: é por isso que muitas vezes, depois de a ter tentado, alguns a
consideram uma empresa desumana. Contudo, a alma foi feita para Deus, e
qualquer outro objeto fecha o coração e o espírito dentro de limites que o
asfixiam. Privá-la de solidão, como o mundo parece atualmente apostado em
fazer, é fazer-lhe uma violência que, com mais propriedade, se pode chamar
desumana. A solidão com Deus é um ideal para que todas as almas devem tender: o
claustro apenas o atinge num movimento mais decidido e mais direto. Na verdade,
não há outra companhia além de Deus: o coração que a não descobriu passará
ainda por muitas provas e só no caso de se. conservar leal é que atingirá essa
evidência, não com tristeza resignada, mas com profundo júbilo.
A vida cartuxa define-se também pela sua atividade interior: esta Ordem é,
dentro da Igreja, a que mais totalmente se dedica à contemplação. Esta palavra
parece ter uma singular virtude, que fascina uns e inquieta outros. Criticou-se
já o seu emprego, de resto antiquíssimo: não é verdade que há homens incapazes
de «ver» de «contemplar» interiormente seja o que for, por mais zelosos e
religiosos que possam ser? Devemos responder, em nossa opinião, que esta
palavra foi escolhida providencialmente para designar a atitude de uma
alma-esposa, ainda que ela esteja longe de estar inundada de luz. Os espíritos
que amam a verdade divina contemplam-na, e esse ato deve ser o único que a alma
bem-aventurada fará no céu. Mas essa aprendizagem cá na terra faz-se no meio do
sofrimento e das trevas da fé: é por isso mesmo que ela é sacrifício,
purificação eficaz e testemunho insigne de caridade. Pode-se contemplar nas
tribulações e na aridez, no trabalho e nos cuidados com o próximo, e até mesmo
nas tentações e nas distrações involuntárias, - a única coisa que importa é que
a alma se mantenha voltada para o Senhor invisível e opere de acordo com esse
olhar. A experiência do amor deve fazer-lhe compreender o valor que ela dá à
contemplação do seu objeto, tanto nas trevas como na luz, e o puro
pressentimento da visão que anima a sua fidelidade: na verdade, é-se contemplativo
na medida em que se ama.
Que este esforço pode ser coroado já nesta vida por uma perfeita união com o
Esposo; acreditamo-la firmemente, - pois, na verdade, nada se interpõe entre
Deus e a alma. Mas essa união é, por sua natureza, secreta: ela implica o
respeito do silêncio em que o Espírito a prepara e mantém.
O segredo é, de resto, uma das características de toda a vida cartuxa: monges e
freiras encontram nele o fresco refúgio - vita umbratiles -,
em que germinam as flores eternas. Como passamos na igreja uma parte das horas
noturnas, esforçamo-nos por santificar por meio da oração o coração de noite;
assim a nossa existência, longe dos olhares do mundo, imita a vida oculta do
Senhor, - a que Ele viveu no seio de Maria e durante os trinta anos que
prepararam a salvação do mundo. Abandonando uma sociedade em que cada um, como
é natural, procura aparecer, os cartuxos e as religiosas
cartuxas esforçam-se por desaparecer, esperando que a verdade
aceite esta prova. Um dos patronos da nossa Ordem, cujo nome vem incluído na
nossa fórmula de profissão, é João, o Precursor, o profeta solitário que
procura apagar-se para que brilhe aos olhos de todos a luz do Verbo.
O papel da mulher, e sobretudo o da virgem, como já foi observado mais de uma
vez, compreende de século para século uma viva afirmação de pudor: sente-se a
si própria como um véu que protege essas reservas sagradas que se devem
conservar puras, para que nunca sequem na terra as fontes da vida e da beleza,
isto é, verdadeiro num sentido muito especial, para as virgens enclausuradas e
consagradas que se cobrem com um véu à imitação de Maria, para guardar e
alimentar dentro de sua vida divina. É por isso que as nossas monjas não
parecem ter-se ligado à nossa Ordem por mero acaso, mas sim por uma disposição
providencial, para que o espírito desta mesma Ordem fosse claramente
manifestado nas suas características essenciais, e para que a nossa resposta à
mesma vocação fosse para nós um mútuo encorajamento, uma confirmação recíproca
da graça comum pela qual nos sentimos gratos para sempre.
Não se poderá esconder, num esboço do ideal cartuxo, a presença constante da
cruz: abandonar o mundo é doloroso para o coração; a solidão, por mais preciosa
que seja por si, é um sacrifício quotidiano para a nossa natureza pecadora; a
obediência, a pobreza, por mais sabiamente proporcionadas que estejam com as
forças humanas, não podem ser aceitas e vividas sem uma agonia da vontade
própria. Se o entusiasmo do amor não acende na alma uma faúlha de heroísmo, não
se aceitarão por muito tempo estes deveres de padre cartuxo ou de irmão
converso, nem os de esposa ou de mãe espiritual. Eles pressupõem que foi ouvido
o chamamento de Cristo: «Se alguém me ama, tome a sua cruz e siga-me». Não há
verdadeira vida interior sem uma paciência infinita, e se a vida do convento
não é uma vida interior, é um cativeiro singularmente infeliz. A graça não
há-de faltar a quem quiser ouvir esse chamamento, mas, se não houver uma
fidelidade quotidiana, toda a graça será estéril e perdida.
As dádivas mais puras do Espírito, os dons da fé, da intuição e da união, que
são alegria, têm contudo necessidade da solidão, do silêncio e da
cruz: a sua realidade desvanece-se numa vida demasiado cômoda, assim como numa
expressão demasiado fácil. A reclusão austera e os sofrimentos que comporta são
bem-vindos para o contemplativo: quando elas lhe faltam, a alma tem a
consciência de que perde um amparo precioso e que seria prejudicial para ela
estar privada dela durante muito tempo.
Não insistiremos mais sobre este aspecto da nossa vida: a vida cartuxa é uma
escola de paciência. Exercida em união com Cristo, na submissão à regra e na
fidelidade à solidão, a paciência purifica a alma, vai gastando lentamente o
amor-próprio e obriga-nos a entregarmo-nos a Deus. O nosso Ministro Geral, D.
Inocêncio Le Masson († 1703), diz que a cartuxa é ainda uma escola de caridade
(no estilo do seu século, «uma academia de caridade»): este
ponto é, de fato, o centro da nossa comunidade religiosa, o seu princípio e o
seu fim. Os sacrifícios de que acabamos de falar, o abandono e a renúncia, têm
como única razão de ser a caridade que manifestam, como vem declarado nos
nossos Estatutos.
A única coisa que se faz nos nossos conventos é amar a Cristo com todas as
nossas forças: sabemos que a abundância deste amor divino nos será dada se
formos fiéis, e se derramará sobre todas as almas que dele necessitarem. Não há
um único cartuxo que não se considere, neste sentido, missionário; não há
nenhuma virgem cartuxa que não tenha o sentimento da sua maternidade espiritual
e não possa dizer com Cristo: «O Espírito do Senhor repousou sobre mim; pelo
que me ungiu para evangelizar os pobres, me enviou a sarar os contritos do
coração, a anunciar aos cativos a redenção, e aos cegos a vista, a pôr em
liberdade os oprimidos, a pregar o ano favorável do Senhor, e o dia da
retribuição» (Luc., IV, 18-19).
O ofício divino e o canto coral são a expressão do amor que a própria Igreja,
Esposa de Cristo, põe na nossa boca, encarregando-nos oficialmente das suas
declarações, dos seus juramentos e dos seus louvores. A caridade que deve ser a
vida do claustro manifesta-se por outro lado, entre os membros do mesmo
mosteiro tanto por um esforço contínuo de delicadeza e compreensão, como pela
comunhão dos corações saciados na mesma fonte. Este ideal nem sempre é atingido
na sua perfeição: no entanto, é realizado de modo mais constante do que o mundo
julga, e a fraternidade monástica sóbria de expressão, alimentada de silêncio,
é um amparo precioso para a alma na sua peregrinação interior.
Parece-nos muitas vezes que as pessoas do século entre as quais se fala de amor
e de amizade, poderiam tirar proveito da experiência das nossas comunidades: na
verdade nenhuma afeição pode perdurar se não for garantida por uma vontade
quotidiana e pela prática da renúncia, que lhe permite encarar de boa vontade
todas as dificuldades; nenhum amor poderá viver se não estiver pronto a
sacrificar até as suas próprias alegrias. Quem não reconhece estas verdades,
não sabe amar como se ama na cartuxa, - e não acreditamos que saiba amar em
qualquer outro lado.
D. Inocência Le Masson, que faz da cartuxa «uma academia de caridade», vê
também nela, o que parecerá talvez ainda mais estranho - «uma academia de
liberdade». Basta, no entanto ter a experiência de um noviciado cartuxo para
saber que a primeira impressão é a que está reduzida no salmo CXXIII: Laquens
contritres est et nos liberati sumus - «O laço foi quebrado, e nós
ficamos livres». O espaço interior é na verdade infinitamente mais vasto do que
aquele que nos rodeia: o que mantém o homem cativo é o amor ansioso pelos bens
transitórios, a ambição estreita, a preocupação paralisante com o que os homens
podem dizer ou pensar de nós, - numa palavra, o amor-próprio em todos os seus
aspectos. A resolução sincera de acabarmos com as suas exigências, de passarmos
a tratar-nos com sábio desprezo, com justa ironia, é comparável ao levantar de
um peso sob o qual mal podia bater o coração. Os votos não fazem mais do que
romper as amarras. O caminho da liberdade não é o dos êxitos exteriores: pelo
contrário, desce até ao mais secreto da alma, até ao fundo divino em que o
Espírito atento à verdade nos liberta (João, VIII, 32). Esta liberdade
desenvolve-se, é como uma descoberta sempre nova à medida que cresce a
intimidade com Deus, que ela reconhece a sua presença imediata e lhe permite
viver nela.
Deus é mais amável do que se pensa, e mais fácil de conhecer do que se julga.
Amá-lO e conhecê-lO são duas graças intimamente ligadas: não se faz nenhum
progresso no amor que não torne mais firme a certeza em que se baseia o
equilíbrio e o vôo do espírito. Amar e contemplar na solidão cartuxa leva a
alma a esquecer-se cada vez mais de si própria, até que a transparência do
espelho interior permita que Deus se reproduza e repouse nela completamente.
Então terá sido cumprido o grande mandamento: «Dai a Deus o que é de Deus»,
isto é tudo. As perguntas e as respostas baseiam-se num único cântico de
louvor, a união é consumada em silêncio para lá das nossas medidas; a esposa
pertence ao esposo: a liberdade foi conquistada.
Possa a Espírito ser melhor ouvido! Que os corações generosos sigam Jesus sem
medo do deserto! E que os que ousaram fazer este esboço do ideal cartuxo,
ajudados pelas orações dos seus leitores, possam vivê-lo mais fielmente, para a
sua própria salvação e de todas as almas. Venite et bibite, amici: inebriamini,
carissimi! – «Vinde, amigos, e bebei na fonte, embriagai-vos, meu amigo! »
(Cânt. V, 1).
NÃO ADIANTA SE ANTECIPAR NO QUERER IR, POIS É DEUS QUEM CHAMA. O BEM NÃO FAZ BARULHO, MAS O BARULHO NÃO FAZ BEM...! QUANTAS ALMAS SE DILACERAM POR ESTE IDEAL CARTUCHO E QUANTOS SANTOS DE LÁ EMANAM? O MUNDO TEM SEDE DE SANTIFICAÇÃO, POIS O DEMÔNIO JÁ SE EMBRIGA COM AS HERESIAS E DEPRAVAÇÕES MUNDANAS... REZEMOS PARA NOS LIBERTARMOS DE NÓS MESMOS...!
ResponderExcluirTIA ROSE