Por um cartuxo anônimo
(Intimidade com Deus)
A coisa mais necessária às
almas desejosas de servirem a Deus é a perseverança. Começa-se de manhã com um
entusiasmo que vai diminuindo lentamente, de modo que ao meio-dia as resoluções
da madrugada estão abandonadas por completo. Muitas vezes a causa é o peso do
corpo, que oprime o espírito. E o remédio para isso é a pessoa habituar-se a
reatar durante o dia o contato com Deus, o sentimento da Sua presença. Que uma
fervorosa invocação a renove: «Jesus, meu Deus, creio em Vós e espero em Vós;
amo-Vos e o que estou a fazer neste momento, faço-o por amor de Vós». Nada se
deve perder: todas as ocasiões podem ser aproveitadas para alimentar esta vida
interior e divina. Deus só nos pede o que Ele próprio nos concedeu - a graça de
poder dar. O que Ele quer é um coração humilde e uma oração ardente que implore
com sinceridade a Sua ajuda. Ele provê às nossas necessidades com graças
suficientes e até mesmo superabundantes, de maneira que nenhum obstáculo nos
poderá meter medo: não há nada que tenha poder contra a bondade. «Ainda não
tivestes nenhuma tentação que não fosse proporcionada à fraqueza humana; e Deus
é fiel, o qual não permitirá que sejais tentados além do que podem as vossas
forças, antes fará que tireis ainda vantagem da mesma tentação, para a poderdes
suportar» (l Cor., X, 13).
Devemos colaborar como se
tudo dependesse de nós. Antes de tudo, devemos evitar escravizar-nos às nossas
tendências e aos nossos gostos, pois a vida espiritual não é a procura de um
prazer sensível, mas de uma sujeição paciente do sensível ao espiritual: Deus
deu-nos o coração e o sentimento para que o ponhamos ao serviço do verdadeiro
amor. O que não ultrapassa o sensível tem bem pouca nobreza: não é digno do
Deus da verdade. É necessário que o coração manifeste a sua sinceridade por
meio de obras, e seja experimentado no fogo do sacrifício. O verdadeiro amor
tem a sua raiz na vontade: é a partir da vontade que ele orienta todas as
pessoas razoáveis e determina a sua ação. Quando o nosso querer se submete
perfeitamente ao de Deus e Lhe corresponde, todo o nosso ser se harmoniza com a
sua idéia eterna. Daí a insistente exortação do Senhor: «Porque vos é
necessária a perseverança, para que, tendo feito a vontade de Deus, recebais o
fruto da sua promessa» (Hebr., X, 36).
É um perigo para todas as
almas desejosas de progresso, ou a intenção é ainda
imperfeita, perder-se nos pormenores da vida quotidiana, parar nesta
contabilidade moral, que é enganadora quando nos satisfaz e, muitas vezes,
quando nos deixa descontentes. Pelo contrário, para voar para Deus num impulso
livre e direto, não basta uma vontade forte: é necessário que a graça nos
liberte do cuidado de nós próprios e que o Espírito nos leve para além dos
respeitos humanos «Obedecei a vossos senhores temporais com reverência e
solicitude, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo; não os servindo só
quando sob as suas vistas, como para agradar aos homens mas como servos de
Cristo, fazendo do coração a vontade de Deus, servindo-os de boa vontade, como
se servísseis o Senhor e não os homens» (Efés.,VI, 5-7).

Se quisermos viver
sobrenaturalmente, não devemos transigir com nenhuma mesquinhez: só se pode
servir a Deus de todo o coração, só um espírito aberto é capaz de refletir a
Sua luz. Enquanto a pusilanimidade acompanha a fé, é sinal que esta se encontra
ainda ligada a elementos da natureza; e quando a vida interior é profunda ela
não deixa de criar na alma essa sensata audácia, essa liberdade de olhar e essa
largueza de espírito sem as quais se não pode conceber um desabrochar das
forças na graça. «Corri pelo caminho dos teus mandamentos quando dilataste o
meu coração» (Salmo CXVIII, 32).
É por isso que as almas
fiéis têm uma caridade compreensiva e delicada, que se sente à vontade em toda
a parte e se satisfaz com tudo. Nenhum sacrifício é demasiado grande para elas,
nenhum serviço a prestar é demasiado pequeno: não há madeiro de que elas não
saibam fazer saltar a chama brilhante do amor. «Na honra e na ignomínia, na
glória ou no desprezo... Como tristes e no entanto sempre alegres; como pobres
tornando muitos ricos, como nada tendo e possuindo tudo» (II Cor., VI, 6-10).
Como é triste, pelo
contrário, ver certas almas piedosas pararem à mínima dificuldade, dir-se-ia
que preocupadas em fazer uma montanha de cada montículo, constantemente
preocupadas consigo próprias e sempre prontas a julgar que lhes fazem mal! É
preciso que uma sacudidela de coragem as arranque finalmente desta miséria:
«elas que olhem para Jesus e Sua Mãe nos Seus indizíveis sofrimentos, e as suas
pequeninas dificuldades desfar-se-ão como gotas de água no oceano. A graça de
Deus muda o sinal a todas as coisas: só ela tem o poder de dar um valor
positivo ao mal que nós suportamos, e de fazer que o aceitemos com amor.
«Corramos com perseverança na carreira que nos é proposta, pondo os olhos no
autor e consumador da fé, Jesus, o qual, tendo-Lhe sido proposto gozo, sofreu a
cruz, não fazendo caso da ignomínia... Considerai, pois, aquele que sofreu tal
contradição dos pecadores contra si, para que não vos fatigueis, desfalecendo
em vossos ânimos» (Hebr., XII, 2-3).
Mais de um cristão se julga
pronto para grandes sacrifícios e de boa vontade empreenderia tarefas heróicas,
e se descuida dos pequenos deveres como se estes fossem indignos dele. Quem
alimenta semelhante ilusão, perde-se miseravelmente: nada é insignificante à
luz do amor. Todos os atos animados pela caridade são de uma nobreza divina.
Esquecemo-nos com demasiada freqüência de que o Filho de Deus e Sua Mãe viveram
a maior parte da Sua vida obscuramente, ocupados nas tarefas mais vulgares e
humildes, e que nem por um instante deixaram de render ao Pai a plenitude da
Sua glória. Antes de nos ensinar, Jesus deu-nos o exemplo: «O que é fiel nas
pequenas coisas é-o também nas grandes» (Luc., XVI, 10).
Quem despreza o pormenor
não tarda a cair nas mais graves fraquezas e por vezes até a perder pouco a
pouco a noção do pecado. Se todos os discípulos de Jesus tivessem observado os
Seus preceitos sobre esta fidelidade, Judas não teria cometido o seu crime de
acordo com a ameaça que é a contrapartida da promessa que acabamos de citar:
«Quem é infiel nas pequenas coisas, sê-lo-á também nas grandes» (Luc., XVI,
10).

Quando Deus passar a ser
para nós a única realidade, o ardor e a certeza viva transbordarão sobre o
ambiente em que vivemos com uma força tal que arrebatará as almas: pois homem
nenhum, nenhuma criatura pode impedir esta influência, esta doação espontânea
da alma fervorosa a todos os que necessitam de apoio, de salvação e de socorro.
O Mestre quer que o amor irradie do coração dos Seus. «Eu roguei por ti, para
que a tua fé não falte; e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos»
(Luc., XXII, 32). Estas palavras foram ditas a Pedro, mas são dirigidas a cada
um de nós, pois ninguém pode guardar para si os tesouros que lhe são confiados,
se são verdadeiramente espirituais. O último de nós e o mais obscuro tem uma missão
a que não pode esquivar-se. A Verdade quer que as nossas ações a manifestem,
que todo o nosso comportamento o faça, que o nosso próprio ser, vivendo do seu
amor, dê testemunho dela. Ai do homem que se envergonha da sua fé, pois o
Senhor envergonhar-se-á dele: devemos combater por Deus e pelos Seus direitos
inalienáveis, custe o que custar. O Salvador predisse a história sangrenta da
Sua Igreja: «Lançar-vos-ão as mãos, e vos perseguirão nas sinagogas e nos
cárceres, e vos levarão à presença dos reis e dos governadores, por causa do
meu nome; e isto vos será ocasião de dardes testemunho da vossa fé. Assentai,
pois, no vosso íntimo em não preparardes a vossa defesa, pois Eu vos darei
língua e sabedoria a que não poderá resistir ou contestar qualquer dos vossos
adversários. - Sereis odiados por todos por causa do meu nome, mas nem um
cabelo se perderá da vossa cabeça. Pela vossa constância é que haveis de ganhar
as vossas as ruas!» (Luc., XXI, 12-19).
A nossa atitude interior
deve ser uma constante docilidade para que Deus realize nela os Seus mínimos
desígnios: dar-Lhe um lugar na nossa alma é prestar-Lhe a homenagem que Ele se
digna desejar. As almas em que a Sua ação não encontra obstáculos espalham a
Sua luz até nas trevas do pecado; é esta a missão do cristão: fazer brilhar a
luz de Deus na escuridão dum mundo pecador. O que Deus concede pela Sua divina
presença - a Sua verdade, o Seu amor e o Seu ser - é prodigalizado
espontaneamente por aquele que vive dessa presença, mesmo sem que ele renove a
sua intenção explícita. Não se dobrar demasiadamente sobre si próprio,
sacrificar a sua vontade à vontade de Deus e em todas as coisas desejar
unicamente agradar-Lhe em união com o Seu Filho: quem assim vive não pode
deixar de ser um sinal de salvação e de reconciliação para muitas almas
perdidas: «Sede irrepreensíveis e sinceros filhos de Deus, sem culpa, no meio
de uma nação depravada e corrompida, onde vós brilhais como astros do mundo»
(Fil., II, 15).
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