Misericordia domini plena est terra
“Da misericórdia do Senhor é cheia a
terra” (Ps. 32, 5).
Sumário. A bondade é por sua natureza inclinada a comunicar seus bens a outros.
Por isso é que Deus, a bondade essencial, tem um extremo desejo de comunicar a
sua felicidade, e a sua natureza não o inclina a punir, mas a usar de
misericórdia. Esta o fez descer do céu à terra, levar uma vida penosa e,
afinal, morrer por nós sobre uma cruz. Não pensemos, pois, que Jesus Cristo nos
faça esperar o perdão muito tempo, depois do pecado; contanto que estejamos
resolvidos a não o tornarmos a ofender.
I. A bondade é essencialmente
comunicativa, isto é, tende a comunicar seus bens também a outros. Ora, Deus,
que de natureza é a bondade infinita, tem um desejo extremo de nos comunicar a
sua felicidade. Por isso, não deseja castigar, mas usar de misericórdia para
com todos. O castigar, diz Isaías, é uma obra alheia da natureza de Deus, e se
manda algum castigo, fá-lo, por assim dizer, contra sua vontade, e como que
coagido pela impiedade: Irascetur, ut faciat opus suum, alienum opus
eius, ut operetur opus suum; peregrinum est opus eius ab eo (1).
E Davi dizia: “Ó Deus,
desamparaste-nos, e destruíste-nos: tu te iraste, e tiveste piedade de nós.
Mostraste ao teu povo coisas duras; deste-nos a beber o vinho de compunção.
Deste aos que te temem um sinal, para que fugissem da face do arco.” (2) Como
se dissesse: O Senhor se mostrou irado, para que venhamos à resipiscência e
detestemos os pecados. Se nos manda algum castigo, é porque nos ama, e, usando
de misericórdia na vida presente, nos quer livrar do castigo eterno. — Numa
palavra, o Senhor constitui a sua glória em usar de misericórdia e em perdoar
aos pecadores: Exaltabitur parcens vobis (3), pois, como diz a
Santa Igreja, desta maneira Deus se compraz em manifestar a sua onipotência: Omnipotentiam
tuam parcendo maxime et miserando manifestas (4).
Foi esta grande misericórdia que o
levou a enviar à terra seu próprio Filho, para se fazer homem, levar trinta e
três anos uma vida penosa e finalmente morrer sobre uma cruz, afim de nos
livrar da morte eterna: Proprio Filio suo non pepercit, sed pro nobis
omnibus tradidit illum (5) — “Não poupou a seu Filho, mas
entregou-O por todos nós”. — Pela mesma razão cantou São Zacharias: “Pelas
entranhas de misericórdia do nosso Deus, com que nos visitou o Sol nascente do
alto.” (6) Por estas palavras, entranhas de misericórdia, entende-se uma
misericórdia que procede do íntimo do coração de Deus, porquanto preferiu ver
morto seu Filho feito homem a ver-nos perdidos.
II. Não penses, meu irmão, que Deus te
fará esperar muito tempo pelo perdão. Apenas desejes o perdão, já Ele estará
pronto a dar-to. Não é preciso chorar muito; logo à primeira lágrima derramada
pela dor de teus pecados, Deus terá misericórdia de ti: Ad vocem
clamores tui, statim ut audierit, respondebit tibi (7) — “Logo que
ouvir a voz de teu clamor, te responderá”. O Senhor não age para conosco
como nós agimos para com Ele: Deus nos convida e nós nos fazemos de surdos. Não
assim Deus: statim ut audierit — logo que nos ouvir dizer: Perdão,
meu Deus —, responder-nos-á e concederá o perdão.
Meu amado Redentor, prostrado aos
vossos pés, agradeço-Vos não me haverdes abandonado depois de tantos pecados.
Quantos dos que Vos ofenderam menos que eu não terão as luzes com que agora me
iluminais! Vejo que me quereis salvo e eu quero salvar-me principalmente para
Vos agradar. Quero ir ao céu para cantar eternamente as misericórdias que
tendes tido comigo. Tenho confiança que já me perdoastes; mas, se por ventura
ainda estivesse em vossa desgraça, por não ter sabido arrepender-me devidamente
das ofensas que Vos fiz, agora me arrependo de toda a minha alma e detesto-as
sobre todos os outros males. † Meus Jesus, misericórdia!
Perdoai-me, por piedade, e aumentai
cada vez mais em mim a dor de Vos ter ofendido, meu Deus, que sois tão bom.
Dai-me dor, dai-me amor. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre
todas as coisas; mas amo-Vos muito pouco. Quero amar-Vos muito; e este amor
eu Vô-lo peço e de Vós espero. Atendei-me, meu Jesus; prometestes atender a
quem Vos roga. — Ó Mãe de Deus, Maria, todos me dizem que não deixais sem
consolo o que a vós se recomenda. Ó vós, que depois de Jesus sois minha
esperança, a vós recorro e em vós confio; recomendai-me a vosso Filho e
salvai-me. (*II 72.)
1. Is. 28, 21.
2. Ps. 59, 3 –
6.
3. Is. 30, 18.
4. Miss. Rom.
5. Rom. 8, 32.
6. Luc. 1, 78.
7. Is. 30, 19.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações:
Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana
depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder &
Cia, 1922, p. 176 - 178.)
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