Nosso Sumo Pontífice, Bento XVI, explica por que a urgência de um "novo movimento litúrgico" e a situação da liturgia na Igreja. Sendo assim esse texto pode nos dá uma visão do pensamento do Papa sobre as questões litúrgicas hoje tão presentes no meio eclesial.
Bento
XVI, A Minha Vida, Lisboa: Livros do Brasil, 2010, pp.106-108
O segundo grande acontecimento que ocorreu no
começo dos meus anos de Ratisbona foi a publicação do "Missal", de
Paulo VI, com a proibição quase total do "Missal" anterior, após uma
fase de transição de cerca de seis meses. O facto de, após um período de
experiências, que amiúde desfiguraram por completo a liturgia, se passar a ter
um texto litúrgico vinculativo, era de saudar como algo seguramente positivo.
Mas fiquei estupefacto com a proibição do "Missal" antigo, dado que
nunca na história da liturgia se verificara uma situação semelhante. Quis-se
passar a ideia de que era uma coisa normal. O "Missal" anterior tinha
sido publicado por Pio V em 1570, na sequência do Concílio de Trento; era
portanto normal que, passados quatrocentos anos e um novo Concílio, um novo
papa publicasse um novo "Missal". Mas a verdade histórica é outra.
Pio V limitara-se a reelaborar o "Missal" romano que se utilizava na
época, coisa que aliás sempre acontecera ao longo dos séculos. Por seu lado,
muitos dos seus sucessores reelaboraram ulteriormente este "Missal",
sem nunca, porém, contraporem um "Missal" ao outro. Tratou-se sempre
de um processo contínuo de crescimento e de purificação, em que, no entanto, a
continuidade nunca era posta em causa. Um "Missal" de Pio V que tenha
sido criado por ele, simplesmente nunca existiu. O que existe é a reelaboração
que ele mandou fazer, como fase de um longo processo de crescimento histórico.
A novidade, após o Concílio de Trento, foi de outra natureza: a invasão súbita
da reforma protestante fizera-se sentir sobretudo na modalidade das reformas
litúrgicas.
Não havia simplesmente uma Igreja católica e uma
Igreja protestante, postas uma ao lado da outra, a divisão da Igreja ocorreu
quase imperceptivelmente e teve a sua manifestação mais visível e
historicamente mais incisiva nas mudanças ao nível da liturgia. Estas mudanças
resultaram de tal maneira diversificadas ao nível local, que o limite entre o
que era e não era católico se tornou, amiúde, bem difícil de definir. Esta
situação de confusão, criada pela ausência de uma normativa litúrgica unitária
e pelo pluralismo litúrgico herdado da Idade Média, fez com que Pio V decidisse
que o "Missale Romanum", o texto da liturgia da cidade de Roma, por
ser seguramente católico, devia ser introduzido em todo o lado onde não
houvesse uma liturgia com, pelo menos, duzentos anos de existência. Onde este
critério se verificava, podia manter-se a liturgia anterior, dado que o seu
carácter católico era considerado seguro. Não se pode, por isso, falar de uma
proibição relativa aos "Missais" anteriores e até ao momento
regularmente aprovados.
Agora, pelo contrário, a promulgação do impedimento
do "Missal" que se tinha desenvolvido ao longo dos séculos, desde o
tempo dos sacramentais da Igreja antiga, implicou uma ruptura na história da
liturgia, cuja consequências não podiam deixar de ser trágicas. Tal como já
tinha acontecido muitas vezes, era razoável e plenamente em linha com as
disposições do Concílio que se fizesse uma revisão do "Missal",
sobretudo, tendo em consideração a introdução das línguas nacionais. Mas nesse
momento aconteceu algo mais: destruiu-se o edifício antigo e, embora utilizando
o material e o projecto deste, construiu-se um novo.
Não há dúvida de que, em algumas partes, este novo "Missal" trouxe verdadeiros melhoramentos e um real enriquecimento. Contudo, o facto de ter sido apresentado como um edifício novo - contraposto ao que fora construído ao longo da história - que se proibisse este último e que, de certa maneira, se concebesse a liturgia já não como um processo vital, mas como um produto de erudição especializada e de competência jurídica, trouxe-nos danos extremamente graves. Com efeito, deste modo desenvolveu-se a ideia de que a liturgia se "faz", de que não é uma realidade que exista antes de nós, - algo de "dado" -, mas que depende das nossas decisões. Consequentemente, esta capacidade de decisão não é só reconhecida aos especialistas ou a uma autoridade central, mas também em definitivo a qualquer comunidade que queira ter uma liturgia própria. O problema é que, quando a liturgia é algo que cada qual pode fazer à sua maneira, ela deixa de nos poder dar aquela que é a sua verdadeira qualidade: o encontro com o mistério, que não é produto das nossas acções, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida. Para a vida da Igreja, é dramaticamente urgente um renovamento da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica, que volte a reconhecer a unidade da história da liturgia e compreenda o Vaticano II não como ruptura, mas como momento evolutivo. Estou convencido de que a crise eclesial em que actualmente nos encontramos depende, em grande parte, da decadência da liturgia, que, por vezes, é mesmo concebida "etsi Deus non daretur": "como se se já não interessasse se Deus está ou não presente nela", se Ele nos fala e ouve ou não. Mas se na liturgia já não aparece a comunhão da fé, a unidade universal da Igreja e da sua história, o mistério de Cristo vivo, de que modo é que a Igreja manifesta a sua substância espiritual? Nesse caso, a comunidade celebra-se apenas a si mesma, coisa que não tem qualquer valor. E dado que a comunidade em si mesma não pode subsistir, mas é criada, na fé e como unidade, pelo próprio Senhor, torna-se inevitável que, nestas condições, se chegue ao ponto da fragmentação em partidos de todo o género, à contraposição partidária numa Igreja que se dilacera a si mesma. É por isso que precisamos de um novo movimento litúrgico, que recupere a verdadeira herança do Concílio Vaticano II
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