A VIDA PERFEITA
O verdadeiro conhecimento de si mesmo
(São Boaventura)
1. A esposa de Cristo que deseja elevar-se
até o cimo da perfeição, há de principiar por si mesma, isto é, esquecida de
todas as coisas exteriores, deve penetrar no íntimo de sua consciência e ali
discutir, examinar e ver, com diligente cuidado, todos os defeitos, todos os
hábitos, todas as inclinações, todas as obras, todos os pecados passados e
presentes. Se achar em si alguma coisa menos reta, chore-a sem demora na
amargura de seu coração. E para melhor chegares, reverenda madre, a este
conhecimento, sabe que todos os nossos pecados e males cometemo-los ou por negligência,
ou por malícia.
Acerca destas três coisas, pois, deve versar o exame de todos os teus males; de
outra forma jamais poderás chegar ao perfeito conhecimento de ti mesma.
2. Portanto, se desejas conhecer-te a ti
mesma e chorar os males cometidos, deves primeiro refletir se há ou houve em ti
alguma negligência. Examina-te sobre a negligência com que vigias o
teu coração, sobre a negligência com que passas o tempo, e
examina-te também se n’alguma obra não tens intenção pecaminosa.
Estas
três coisas cumpre observar com o maior cuidado: vigiar bem o coração,
empregar utilmente o tempo, e prefixar a toda obra um fim bom
e conveniente.
Igualmente deves refletir sobre a negligência que tivestes na oração,
na leitura e na execução da obra;
porque nestas três coisas te deves exercer e aperfeiçoar com afinco, se queres
produzir e dar bom fruto a seu tempo. Tão intimamente estas três coisas estão
unidas, que de forma alguma é suficiente uma sem a outra. Outrossim, cumpre
refletires sobre quanto és ou foste negligente em fazer penitência,
em lutar e em progredir; porque é mister chorar,
com suma diligência, os males cometidos, repelir as tentações diabólicas, e
progredir de uma virtude para outra para que possas chegar à terra prometida.
Desta
forma, pois, o exame se ocupa com a negligência.
3. Se, porém, desejas conhecer-te melhor,
deves, em segundo lugar, refletir se em ti dominou ou domina a concupiscência
da voluptuosidade, da curiosidade ou da vaidade. Certamente então reina no
homem religioso a concupiscência da voluptuosidade quando deseja coisas doces,
isto é, manjares saborosos; quando deseja coisas moles; isto é, vestidos
deliciosos; quando deseja coisas carnais, isto é, prazeres luxuriosos.
A
concupiscência da curiosidade existe na serva de Deus, quando deseja saber
coisas secretas, quando deseja ver coisas belas, quando deseja possuir coisas
raras.
A
concupiscência da vaidade, porém, impera na esposa de Cristo, quando deseja o
favor dos homens, quando busca o louvor humano, quando almeja honra diante dos
homens. Como veneno deve a serva de Cristo fugir a tudo isso, porque é tudo
isso a raiz de todo o mal.
4. Em terceiro lugar, se queres ter
conhecimento certo de ti mesma, deves diligentemente refletir se há ou houve em
ti a malícia da iracúndia, da inveja e da preguiça. Ouve, caríssima irmã, o que
digo solicitamente.
No
homem religioso existe a iracúndia quando no espírito, no coração, no afeto,
nos sinais, no semblante, na palavra ou no clamor mostra a seu próximo
indignação do coração, por mais leve que seja, ou rancor.
A
inveja reina no homem quando se alegra com a desgraça do próximo e se
entristece com a sua prosperidade, quando sente prazer com os males do próximo
e desfalece com a sua felicidade.
A
preguiça reina no religioso, quando é tíbio, sonolento, ocioso, lerdo,
negligente, frouxo, dissoluto, indevoto, triste e tedioso. Tudo isto a esposa
de Cristo deve detestar e fugir-lhe como veneno mortífero, porque nestas coisas
consiste a perdição do corpo e da alma.
5. Se, portanto, caríssima serva de Deus, queres chegar ao perfeito
conhecimento de ti mesma, “torna a ti mesma, entra no teu coração,
aprende a conhecer o teu espírito. Vê o que és, o que foste, o que devias ser,
o que podias ser: o que foste pela natureza, o que agora és pela culpa, o que
devias ser por teu trabalho, o que ainda podes ser pela graça.”
Ouve,
ainda caríssima madre, ouve o profeta Davi, como ele se faz o teu
exemplo: “Meditei, diz ele, de noite no meu coração, exercitei-me e
espanei o meu espírito. (Salmos 76. 7) Meditava ele no seu coração;
medita também tu no teu coração. Espanava ele o seu espírito; espana também tu
o teu espírito. Trabalha nesse campo, presta atenção a ti mesma.
Se
com insistência fazes este exercício, sem dúvida acharás um precioso tesouro
escondido. Pois em virtude deste exercício cresce a plenitude do ouro, a
ciência é multiplicada e aumentada a sabedoria.
Com
este exercício purificam-se os olhos do coração, aguça-se o engenho, dilata-se
a inteligência. De nada faz um reto juízo quem não se conhece a si mesmo, quem
não pensa na sua dignidade. Desconhece por completo que opinião deva fazer do
espírito angélico e do divino quem não reflete antes sobre o seu próprio
espírito. Se ainda não és capaz de entrar em ti mesma, como serás capaz de
elevares-te a coisas que são acima de ti? Se ainda não és digna de entrar no
primeiro tabernáculo, com que cara presumes entrar no segundo tabernáculo? (1)
6. Se desejas
elevar-te, como São Paulo, ao segundo e terceiro céu, hás de passar pelo
primeiro, isto é, pelo teu coração. O modo como possas devas fazê-lo,
suficientemente t’o ensinei acima. Mas também São Bernardo otimamente te
informa quando diz: “Se queres conhecer o estado de tua perfeição,
examina, em discussão constante, a tua vida, e reflete diligentemente, quanto
te adiantas e quanto te atrasas, quais são os teus costumes, quais as tuas
inclinações, quão semelhante ou dessemelhante és a Deus, quão perto, ou quão
longe.”
Oh!
Como é grande o perigo do religioso que quer saber muitas coisas, mas não tem
verdadeiro e sincero desejo de conhecer-se a si mesmo! Oh! Como está prestes a
perder-se o religioso que é curioso em conhecer as coisas, solicito em julgar
as consciências dos outros, mas ignora e desconhece a própria!
Ó meu
Deus, donde tanta cegueira num religioso? Eis, a causa é patente, ouve-a.
Porque a mente do homem é distraída pelos cuidados, não entra em si pela
memória; porque é anuviada por fantasias, não torna a si pela inteligência;
porque é arrastada por concupiscências ilícitas, jamais se restaura pelo desejo
da suavidade intima e da alegria espiritual.
Por
isto jaz totalmente submerso nessas coisas sensíveis, é incapaz de entrar em si
mesmo e penetrar até à imagem de Deus no seu íntimo. Desta forma o espírito se
lhe reduz à miséria; ignora e desconhece-se a si mesmo.
Procura, pois, lembrares-te de ti e conheceres-te a ti mesma, deixando de lado
tudo o mais. Isto pedia também São Bernardo, dizendo: “Deus me dê a
graça de não saber outra coisa senão que me conheça a mim mesmo.”
***
(1) A passagem citada de São Vitor entende-se melhor pelo que São
Boaventura diz no seu itinerário da mente de Deus (c.5 n.1), onde distingue um
tríplice modo de contemplar a Deus, isto é, fora de nós pelos vestígios que ali
encontramos de Deus; dentro de nós, isto é, pela imagem de Deus que é a alma
com suas potências e faculdades; acima de nós, isto é, pela luz que resplandece
sobre nós; e depois acrescenta o Santo: "os que se exerceram no primeiro
modo já entraram no adro do tabernáculo; os que no segundo, entraram no
santo; mas os que no terceiro, entram com o Sumo Pontífice no Santo dos
Santos.” (Veja-se o livro do Êxodo 25-28 onde se descreve o tabernáculo).
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