Alexandre Gonçalves | Colaboração para a Folha - Em maio de 1986, os irmãos Clodovis e Leonardo
Boff publicaram uma carta aberta ao cardeal Joseph Ratzinger. O artigo
analisava a instrução "Libertatis Conscientia", em que o futuro papa
Bento 16 visava corrigir os supostos desvios da Teologia da Libertação na
América Latina. Os religiosos brasileiros desaprovavam, com uma ponta de ironia
e uma boa dose de audácia, a "linguagem com 30 anos de atraso" no
texto.
Em 2007,
o irmão mais novo de Leonardo Boff voltou à carga. Mas, dessa vez, o alvo foi a
própria Teologia da Libertação --movimento do qual ele foi um dos principais
teóricos e que defende a justiça social como compromisso cristão. Ele censurou
a instrumentalização da fé pela política e enfureceu velhos colegas ao sugerir
que teria sido melhor levar a sério a crítica de Ratzinger.
Em
entrevista à Folha por telefone, frei Clodovis diz que Bento 16 defendeu o
"projeto essencial" da Teologia da Libertação, mas o critica por
superdimensionar a força do secularismo no mundo.
Folha - Bento 16 foi o grande inimigo da Teologia
da Libertação?
Clodovis Boff - Isso é uma caricatura. Nos dois documentos que
publicou, Ratzinger defendeu o projeto essencial da Teologia da Libertação:
compromisso com os pobres como consequência da fé. Ao mesmo tempo, critica a
influência marxista. Aliás, é uma das coisas que eu também critico.
No
documento de 1986, ele aponta a primazia da libertação espiritual, perene,
sobre a libertação social, que é histórica. As correntes hegemônicas da
Teologia da Libertação preferiram não entender essa distinção. Isso fez com
que, muitas vezes, a teologia degenerasse em ideologia.
E os processos inquisitoriais contra alguns
teólogos?
Ele
exprimia a essência da igreja, que não pode entrar em negociações quando se trata
do núcleo da fé. A igreja não é como a sociedade civil, onde as pessoas podem
falar o que bem entendem. Nós estamos vinculados a uma fé. Se alguém professa
algo diferente dessa fé, está se autoexcluindo da igreja.
Na
prática, a igreja não expulsa ninguém. Só declara que alguém se excluiu do
corpo dos fiéis porque começou a professar uma fé diferente.
Não há
margem para a caridade cristã?
O amor é
lúcido, corrige quando julga necessário. [O jesuíta espanhol] Jon Sobrino diz:
"A teologia nasce do pobre". Roma simplesmente responde: "Não, a
fé nasce em Cristo e não pode nascer de outro jeito". Assino embaixo.
Quando o sr. se tornou crítico à Teologia da
Libertação?
Desde o
início, sempre fui claro sobre a importância de colocar Cristo como o
fundamento de toda a teologia. No discurso hegemônico da Teologia da
Libertação, no entanto, eu notava que essa fé em Cristo só aparecia em segundo
plano. Mas eu reagia de forma condescendente: "Com o tempo, isso vai se
acertar". Não se acertou.
"Não é a fé que confere um sentido
sobrenatural ou divino à luta. É o inverso que ocorre: esse sentido objetivo e
intrínseco confere à fé sua força." Ainda acredita nisso?
Eu
abjuro essa frase boba. Foi minha fase rahneriana. [O teólogo alemão] Karl
Rahner estava fascinado pelos avanços e valores do mundo moderno e, ao mesmo
tempo, via que a modernidade se secularizava cada vez mais.
Rahner
não podia aceitar a condenação de um mundo que amava e concebeu a teoria do
"cristianismo anônimo": qualquer pessoa que lute pela justiça já é um
cristão, mesmo sem acreditar explicitamente em Cristo. Os teólogos da
libertação costumam cultivar a mesma admiração ingênua pela modernidade.
O
"cristianismo anônimo" constituía uma ótima desculpa para, deixando
de lado Cristo, a oração, os sacramentos e a missão, se dedicar à transformação
das estruturas sociais. Com o tempo, vi que ele é insustentável por não ter
bases suficientes no Evangelho, na grande tradição e no magistério da igreja.
Quando o sr. rompeu com o pensamento de Rahner?
Nos anos
70, o cardeal d. Eugênio Sales retirou minha licença para lecionar teologia na
PUC do Rio. O teólogo que assessorava o cardeal, d. Karl Joseph Romer, veio
conversar comigo: "Clodovis, acho que nisso você está equivocado. Não
basta fazer o bem para ser cristão. A confissão da fé é essencial". Ele
estava certo.
Assumi
postura mais crítica e vi que, com o rahnerismo, a igreja se tornava
absolutamente irrelevante. E não só ela: o próprio Cristo. Deus não precisaria
se revelar em Jesus se quisesse simplesmente salvar o homem pela ética e pelo
compromisso social.
Bento 16 sepultou os avanços do Concílio Vaticano
2º?
Quem
afirma isso acredita que o Concílio Vaticano 2º criou uma nova igreja e rompeu
com 2.000 anos de cristianismo. É um equívoco. O papa João 23 foi bem claro ao
afirmar que o objetivo era, preservando a substância da fé, reapresentá-la sob
roupagens mais oportunas para o homem contemporâneo.
Bento 16
garantiu a fidelidade ao concílio. Ao mesmo tempo, combateu tentativas de
secularizar a igreja, porque uma igreja secularizada é irrelevante para a
história e para os homens. Torna-se mais um partido, uma ONG.
Mas e a reabilitação da missa em latim? E a
tentativa de reabilitação dos tradicionalistas que rejeitaram o Vaticano 2º?
Não
podemos esquecer que a condição imposta aos tradicionalistas era exatamente que
aceitassem o Vaticano 2º. O catolicismo é, por natureza, inclusivo. Há espaço
para quem gosta de latim, para quem não gosta, para todas as tendências
políticas e sociais, desde que não se contraponham à fé da igreja.
Quem se
opõe a essa abertura manifesta um espírito anticatólico. Vários grupos
considerados progressistas caíram nesse sectarismo.
Esses
grupos não foram exceção. Bento 16 sofreu dura oposição em todo o pontificado.
A
maioria das críticas internas a ele partiu de setores da igreja que se deixaram
colonizar pelo espírito da modernidade hegemônica e que não admitem mais a
centralidade de Deus na vida. Erigem a opinião pessoal como critério último de
verdade e gostariam de decidir os artigos da fé na base do plebiscito.
Tais
críticas só expressam a penetração do secularismo moderno nos espaços
institucionais da igreja.
Como descreveria a relação de Bento 16 com a
modernidade?
É
possível identificar um certo pessimismo na sua reflexão. Ele não está só. Há
um rio de literatura sobre a crise da modernidade, que remete até mesmo a
autores como Nietzsche e Freud. O que ele tem de diferente? Propõe uma saída: a
abertura ao transcendente.
Ainda
assim, há pessimismo.
Há algo
que ele precisaria corrigir: Bento 16 leva a sério demais o secularismo
moderno. É uma tendência dos cristãos europeus. Eles esquecem que o secularismo
é uma cultura de minorias. São poderosas, hegemônicas, mas ainda assim
minorias.
A
religião é a opção de 85% da humanidade. Os ateus não passam de 2,5%. Com os
agnósticos, não chegam a 15%. Minoria culturalmente importante, sem dúvida:
domina o microfone e a caneta, a mídia e a academia. Mas está perdendo o gás.
Há um reavivamento do interesse pela espiritualidade entre os jovens.
Que outras críticas o sr. faria a Bento 16?
Ele
preferiria resolver problemas teológicos a se debruçar sobre questões
administrativas na Cúria. E isso gerou diversos constrangimentos no seu
pontificado. Ele também não tem o carisma de um João Paulo 2º. De certa forma,
era o esperado em um intelectual como ele.
Não está na hora de a igreja ficar mais próxima da
realidade dos fiéis?
Bento 16
não resolveu um problema que se arrasta desde o Concílio Vaticano 2º: a
necessidade de se criarem canais para a cúpula escutar e dialogar com as bases.
Os
padres nas paróquias muitas vezes ficam prensados entre a letra fria que vem da
cúpula e o cotidiano sofrido dos fiéis, que pode envolver dramas como aborto ou
divórcio. Note que não sugiro mudanças no ensinamento da igreja. Mas acho que
seria mais fácil para as pessoas viverem a doutrina católica se houvesse
processos que facilitassem esse diálogo.
Como vê o futuro da igreja?
A
modernidade não tem mais nada a dizer ao homem pós-moderno. Quais as ideologias
que movem o mundo? Marxismo? Socialismo? Liberalismo? Neoliberalismo? Todas
perderam credibilidade. Quem tem algo a dizer? As religiões e, sobretudo no
Ocidente, a Igreja Católica.
Fonte: Folha de São Paulo
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