Não menos do que a
cruz, o presépio é a escola da vida interior. Começamos pelo presépio e
acabamos pela cruz: um contém elementos dessa vida, e outra encerra a sua
consumação. E como, em todas as ciências, os elementos são o que há de mais
importante e necessário, estudemos o presépio e esforcemo-nos por traduzir em
nosso procedimento o que ele nos ensina. Contemplemos o Verbo feito carne, o
Filho de Deus tornado criancinha. Vejamos quais eram as Suas disposições ao
nascer; consideremos as circunstâncias exteriores do Seu nascimento e quais
foram as pessoas por Ele chamadas ao presépio.
Foi atraído à terra
pelo amor que dedicava a Seu Pai e aos homens. O sentimento que Lhe enchia o
coração era o de oferecer-Se em holocausto ao Pai para reparar a Sua glória e
salvar o gênero humano. São Paulo, após David, no-lo ensina. Diz o apóstolo: ao
entrar no mundo exclamou: "Os sacrifícios e as vítimas da antiga lei não
Vos agradaram, mas me destes um corpo. Então disse: Eis-me aqui, para cumprir,
ó meu Deus, a Vossa vontade". E qual era essa vontade?
Vontade infinitamente
rigorosa, segundo a qual devia Ele sobrecarregar-Se de todos os nossos pecados
e suportar o peso da justiça divina. Tem, pois, essa vontade ao nascer, a ele
submete-se com amor. Desde o berço visa a Cruz, suspira pela cruz e o Seu
primeiro desejo é morrer nela pregado para apaziguar o Pai e nos reunir.
Aprendamos por aí que
a cruz é o grande objeto da vida interior; a primeira coisa que, ao
ingressarmos nesta, Deus nos apresenta e a sua aceitação o primeiro sentimento
do coração entregue inteiramente a Deus. Ora a cruz significa esquecimento,
perda completa de nós mesmos em Deus, sacrifício perfeito de todos os
interesses para só pensarmos nos interesses de Deus. Só Ele que no-lo propõe,
nos inspira a coragem de aceitá-lo e nos dá a força para realizá-lo. Mas, da
nossa parte, não devemos arrastá-lo constantemente e suspirar pela sua
realização como fez Jesus Cristo.
Mas por que nasceu Ele criancinha? Por que não veio ao mundo, como Adão, em
estado de homem feito? Dependia, certamente, d'Ele vir assim, mas teve razões
para preferir o estado de infância. E a principal de todas foi o desejo de
nos ensinar que, uma vez entregues a Deus, é preciso depositarmos a Seus pés o
nosso discernimento, a nossa vontade e força; volvermos inteiramente à
pequenez, à fraqueza e à falta de juízo da criança; em suma, aniquilarmos todo
o passado, ficarmos em novo estado, iniciarmos vida nova, cujo princípio é
Deus.
E que vida é essa? Dependência perfeita da graça, simplicidade e obediência.
Contemplemos o nascimento de Jesus Cristo: Ele adora ao Pai tão perfeitamente
no berço, quanto na cruz. Toda a Sua admiração, porém, está contida no coração:
nada diz, nada faz, está como que aniquilado: e nesse próprio aniquilamento
consiste a perfeição da Sua homenagem.
Compreendamo-lo bem,
nós que nos queixamos diante de Deus como animais, sem pensamento, sem palavra,
sem ação. Este estado, que é a morte do amor próprio, é incomparavelmente mais
agradável a Deus, do que tudo quanto o nosso espírito, o nosso coração, e a
nossa boca pudessem exprimir de mais sublime.
Calarmo-nos diante de
Deus, humilharmo-nos, aniquilarmos, como se aí não estivéssemos, é a adoração
perfeita em espírito e verdade. Que necessidade tem Deus das nossas luzes e dos
nossos sentimentos que só servem para alimentar secreto orgulho e vã
complacência em nós mesmos? Quanto mais se aproximar a nossa oração da de Jesus
Menino, quanto mais humilde e desprezível ela nos parecer, tanto mais elevada
será aos olhos de Deus.
Passemos as circunstâncias exteriores do nascimento de Jesus.
A Virgem Maria,
repelida de todas as hospedarias, vê-Se obrigada a procurar abrigo em um
estábulo.
Aí nasce o Filho de
Deus: no seio da pobreza, humilhação e sofrimento. Uma manjedoura, na qual há
um pouco de palha, serve-Lhe de berço; são pobres os paninhos que O envolvem;
no meio da noite, na mais rude estação do ano, em lugar exposto a todos os
ventos, o Seu tenro e delicado corpo é sujeito a todas as intempéries do ar.
Ninguém assiste ao Seu nascimento; nenhum socorro ou alívio Lhe é prestado.
Que entrada no mundo
para o Filho de Deus! Para Aquele que vem resgatar o mundo e fora anunciado
desde o começo do mundo aos nossos primeiros pais como o libertador do gênero
humano! Quem jamais acreditaria que Ele escolhesse nascimento tão pobre, tão
obscuro, tão amargurado!
Mas como esse nascimento
é instrutivo para aqueles que o Espírito Santo faz nascer para a vida interior!
No Menino divino
encontram modelo perfeito das três virtudes que devem dali em diante
ser as Suas companheiras inseparáveis: Completo desapego dos bens da
terra, até abraçar a mais rigorosa penitência, se assim aprouver a
Deus. Soberano desprezo de todas as honras mundanasaté desejar ser não só
ignorado, mas também ridicularizado e menosprezado. Renúncia absoluta de
todos os prazeres do mundo, até entregar o corpo a todo gênero de
mortificações. Eis a lição que Jesus, ao nascer, deu às almas interiores.
Durante toda Sua vida Ele amou e praticou o que escolhera no presépio. Foi
sempre pobre, vivendo do trabalho manual, não tendo nem sequer onde repousar a
cabeça. Foi sempre desconhecido pelo mundo, ou vítima dos seus desprezos, das
suas calúnias e perseguições. Absteve-Se de todos os prazeres, e sofreu, na Sua
vida particular e pública, todas as privações e dores imagináveis. Na Sua morte
demonstrou no mais elevado grau a prática dessas três virtudes.
Abracemo-las também
ao entrarmos na vida espiritual, e jamais delas nos separemos.
Finalmente, quais
foram às pessoas admitidas no presépio de Jesus? É coisa bem notável terem aí
comparecido apenas as que foram chamadas por uma voz celeste ou por sinal
milagroso. Isto nos ensina que para adotarmos a vida interior, cujo começo o
presépio simboliza, precisamos ter vocação divina e que, portanto, ninguém
de motu proprio pode nela entrar. Podemos, no entanto, contribuir para
a vocação mediante algum preparo nosso, isto é, procurando ter as mesmas
disposições e, que estavam os pastores e os magos.
Devemos, pois, a
exemplo dos pastores, ser simples, pobres de espírito e pequenos; como eles ter
grande retidão de coração, viver na inocência ou romper absolutamente com o
pecado. Geralmente são ainda as pessoas de condição comum, de vida humilde e
obscura, ignoradas e desprezadas pelo mundo, as que Deus chama à vida interior.
Ao demais, os
pastores, mesmo durante a noite, velavam pelos seus rebanhos - o que demonstra
constituírem preparo para a vocação do céu a vigilância e atenção para nós
mesmos, o temor de Deus, a delicadeza da consciência - a fuga das
ocasiões. Os pastores prestaram ouvidos às palavras dos anjos, acreditaram
sem refletir ou raciocinar, e, abandonando tudo, partiram imediatamente para
ver o Menino recém-nascido. Assim também a alma deve escutar com atenção o que
Deus lhe diz ao coração, crer na Sua palavra com fé humilde e cega, largando
tudo para seguir pronta e fielmente o instinto da graça.
Nas pessoas dos
magos, os grandes e sábios são também chamados ao presépio, porém, grandes
humildes, desapegados de tudo, prontos a sacrificar tudo para acudir ao chamado
de Deus, sábios sem arrogância, sem presunção, dóceis à luz divina, ante a qual
fazem calar todos os raciocínios. Tais foram um São Luiz, um Santo Agostinho,
tantos santos de ambos os sexos, distintos pelo brilho do seu nascimento e dos
seus cargos, ou pela extensão de seu gênio e dos seus conhecimentos.
O caráter de Herodes,
dos fariseus, dos sacerdotes e doutores da lei dá-nos a conhecer aqueles que
Jesus rejeita e que a seu turno não aproveitam os meios ordinários fornecidos
pela graça para o conhecimento e a prática da vida interior.
(Manual das almas
interiores - Compêndio de Opúsculos inéditos do Pe. Grou, da Companhia de
Jesus, 1932, Vozes de Petrópolis)