Se a rebelião de Lutero conseguiu dividir a
cristandade, a providência de Deus foi muito mais eficaz em Seus santos.
Tratado
o doloroso tema da separação entre Cristo e a Igreja ( ver aqui), que não poucas
pessoas realizam em nossos tempos, é hora de voltarmos o olhar ao século XVI,
quando um monge agostiniano se tornou pioneiro em talhar um “cristianismo” à
sua própria medida, desvinculado da autoridade do Papa e da mediação sacerdotal,
querida pelo próprio Senhor.
Martinho
Lutero, nascido em 1483, na Saxônia, era um rapaz de inteligência aguçada,
característica que seus pais e professores identificaram muito cedo, quando ele
recebeu o trivium, em Mansfeld. Foi com 21 anos, mal acabara de começar
os seus estudos de direito, que o rapaz decidiu fazer-se religioso. Em viagem a
Erfurt, onde frequentava a universidade, Lutero foi surpreendido por uma
tempestade bastante violenta. Em meio aos raios e trovões que o assustavam, ele
invocou o auxílio de Santa Ana e fez uma promessa irrefletida: “Se me ajudares,
far-me-ei monge”.
De
fato, apenas duas semanas depois do incidente, ele batia à porta do convento
dos eremitas de Santo Agostinho. Levava uma vida de disciplina e oração, mas,
aflito por escrúpulos e por uma ideia muito severa de Deus, não conseguia obter
a paz da alma. Escreve Daniel-Rops que “Lutero era um ser intensamente dominado
pelo sentimento trágico do pecado” [1]. A sua luta, mais que contra a
sensualidade da carne, era contra a soberba da vida. “Os pensamentos hediondos,
o ódio a Deus, a blasfêmia, o desespero, eis as grandes tentações”, escrevia
[2].
Um
versículo bíblico em particular inquietava o monge da Saxônia: “Nele [no
evangelho] se revela a justiça de Deus, que vem pela fé e conduz à fé,
como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” [3]. Por muito tempo, Lutero não
conseguia ver na “justiça de Deus” senão a justitia puniens, a ira
divina pelas faltas do homem. Até que ele descobre que Deus não apenas julga o
homem, como também o justifica. Essa visão – que, até aqui, nada tem de
errada – levou-o a formular, no entanto, uma nova doutrina. Para responder ao
que o atormentava dia e noite, Lutero firma a salvação somente pela fé,
eliminando a necessidade da penitência e do combate contra o pecado e
deturpando toda a doutrina da graça: se o são ensinamento católico lembrava que
a amizade de Deus não pode conviver com o pecado, a sua heresia concebia uma
graça pela qual “todas as manchas da alma são como que cobertas por um manto de
luz” [4]. O cristianismo deixava de ser a religião da santidade para se
transformar num disfarce sutil, uma máscara para cobrir as faltas do homem.
Com
o passar do tempo – e o advento da famosa e difícil questão das indulgências –,
Lutero uniu à sua sola fide a rejeição do poder pontifício e, em 1520, no auge
de sua rebeldia, o livre exame, o pedido de extinção do celibato eclesiástico e
a crítica aos próprios Sacramentos, dos quais ele só reconhecia a validade de
três. Em 1521, estava assinada a sua excomunhão, mas a cristandade já estava
dividida.
Antes
de qualquer coisa, é preciso lembrar a gravidade do ato de Lutero, um ato de
desobediência que não pode ser desculpado por nenhuma contingência histórica. Ainda
que muitas vezes os erros dos membros da Igreja gritem – como gritavam no
século XVI e gritam também hoje –, a sua santidade, forjada com o sangue do
Cordeiro, fala muito mais alto. Por isso, não se pode olhar para a rebelião
dos chamados “reformadores” senão com desconfiança e desaprovação.
Só
que, ao mesmo tempo, “como Deus é o criador soberanamente bom das naturezas
boas, também é o ordenador soberanamente justo das vontades más, de tal forma
que, quando usam mal das naturezas boas, Ele faz bom uso até mesmo das vontades
más” [5]. Da vontade má de Lutero, que cedeu às “grandes tentações”, caindo no
pecado da soberba, o Senhor suscitou a Companhia de Jesus, na qual floresceram
homens da estirpe de Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier e São José de
Anchieta, apóstolo do Brasil; suscitou almas como Santa Teresa de Ávila e São
João da Cruz, que levaram a cabo a reforma do Carmelo; suscitou São João de
Ávila, São Filipe Néri, São Carlos Borromeu e outros numerosos homens de fibra,
que podem com razão ser chamados de “reformadores”.
É
nas grandes provações que agitam a barca da Igreja que se revelam os fiéis. Se
a rebelião de Lutero conseguiu dividir a cristandade, a providência de Deus foi
muito mais eficaz em Seus santos.
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
1.
Henri Daniel-Rops. A Igreja da
Renascença e da Reforma (I). Quadrante, São Paulo. p. 273
2.
Henri Daniel-Rops. A Igreja da
Renascença e da Reforma (I). Quadrante, São Paulo. p. 274
3.
Rm 1, 17
4.
Henri Daniel-Rops. A Igreja da Renascença
e da Reforma (I). Quadrante, São Paulo. p. 277
5.
Santo Agostinho, De Civitate Dei, XI,
17
6.
1 Cor 11, 19
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário ou pergunta!