A
Vida Espiritual explicada e comentada
Adolph
Tanquered
§ I. O orgulho em si mesmo
820. O orgulho é um desvio daquele sentimento legítimo que nos leva a
estimar o que há de bom em nós, e a procurar a estima dos outros na medida em
que ela é útil às boas relações que devemos manter com eles. Não há dúvida que
podemos e devemos estimar o que Deus pôs em nós de bom, reconhecendo que Ele é
o primeiro princípio e o último fim de tudo: é um sentimento que honra a Deus e
nos leva a respeitar-nos a nós mesmos. Pode-se, outrossim, desejar que os
outros vejam esse bem, que o apreciem e dêem por ele glória a Deus, do mesmo
modo que devemos reconhecer e estimar as qualidades do próximo: esta mútua
estima não faz senão favorecer as boas relações que existem entre os homens. Mas
pode haver desvio ou excesso nestas duas tendências. Por vezes esquece o homem
que Deus é autor desses dons, e atribui-os a si mesmo: o que é evidentemente
desordem, porque é negar, ao menos implicitamente, que Deus é o nosso primeiro
princípio. Assim mesmo, pode alguém ser tentado a operar para si próprio, ou
para ganhar a estima dos outros, em lugar de trabalhar para Deus e de lhe
referir toda a honra do que faz: é também desordem, porque é negar,
implicitamente ao menos, que Deus é o nosso último fim. Tal é a dupla desordem
que se encontra neste vício.
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Cena do Filme O Retrato de Dorian Gray |
Pode-se, pois,
definir: um amor desordenado de si mesmo que faz que o homem se estime
explícita ou implicitamente, como se fosse o seu primeiro princípio ou último
fim. E uma espécie de idolatria, porque o homem se considera como o seu próprio
Deus, segundo faz notar Bossuet (n.º 204). - Para melhor combatermos o orgulho,
exporemos:
1.º- as suas
formas principais;
2.º- os defeitos
que ele gera;
3.º- a sua
malícia;
4.º- os seus
remédios.
I. As principais
formas do orgulho
821. 1.º A
primeira forma consiste em se considerar a si mesmo o homem, explícita ou
implicitamente, como seu primeiro princípio.
A) Há
relativamente poucos que explicitamente se amem de forma tão desordenada que
cheguem a considerar-se primeiro princípio de si mesmos.
a) É o pecado dos
ateus que voluntariamente rejeitam a Deus, por não quererem senhor; ni
Dieu, ni maitre. É deles que fala o Salmista, quando assevera: “Disse o
insensato em seu coração: não há Deus. Dixit insipiens in corde suo:
non est Deus”[1]. Foi equivalentemente o pecado de Lúcifer, que, pretendendo
ser autônomo, recusou submeter-se a Deus; o dos nossos primeiros pais, que,
desejando ser como deuses, quiseram conhecer por si mesmos o bem e o mal; o dos
hereges, que, como Lutero, se negaram a reconhecer a autoridade da Igreja
estabelecida por Deus; e o dos racionalistas que, ufanos da própria razão, não
querem submetê-la à fé. É, outrossim, o pecado de certos intelectuais, que,
demasiadamente orgulhosos para aceitarem a interpretação tradicional dos
dogmas, os atenuam e deformam, para os harmonizarem com as suas exigências.
822. B) É maior o
número dos que caem implicitamente neste defeito, procedendo como se os dons
naturais e sobrenaturais, que Deus nos liberalizou, fossem completamente
nossos. Reconhece-se, é verdade, em teoria que Deus é o nosso primeiro
princípio; mas na prática, tem-se da própria pessoa uma estima desmesurada,
como se cada um fosse autor das qualidades que possui.
a) Há quem se
compraza nas suas qualidades e merecimentos, como se fosse único autor deles:
“A alma, vendo-se bela, diz Bossuet, deleitou-se em si mesma e adormeceu na
contemplação da própria excelência: deixou um momento de se referir a Deus:
esqueceu a própria dependência; primeiramente demorou-se e depois entregou-se a
si mesma. Mas, procurando ser livre até se emancipar de Deus e das leis a
Justiça tornou-se o homem cativo do seu pecado”.
823. b) Mais grave
é o orgulho dos que se atribuem a si mesmo a prática das virtudes como os
Estóicos; dos que imaginam que os dons gratuitos de Deus são frutos dos nossos
merecimentos e que as nossas boas obras nos pertencem mais que a Deus, quando
em realidade é Ele a sua causa principal; ou enfim, dos que nelas se comprazem
como se fossem unicamente suas.
824. C) É este
mesmo princípios que faz que o orgulhoso exagere as suas qualidades
pessoais.
a) Fecham-se os
olhos sobre os próprios defeitos, e remiram-se as qualidades com óculos de
aumento; por esse processo chega o homem a atribuir-se qualidades que não
possui ou que ao menos não têm mais que a aparência da virtude; e assim é que,
dando esmola por ostentação, julgará que e caritativo, quando não passa de
orgulhoso; imaginará que é um santo, porque tem consolações sensíveis, ou
escreveu belos pensamentos ou excelentes resoluções, quando na realidade está
ainda nos primeiros degraus da escala da perfeição. Outros crêem ter uma grande
alma, porque fazem pouco caso das pequenas regras, querendo-se santificar pelos
grandes meios.
b) Daí a
preferir-se injustamente aos demais não vai mais que um passo: examinam-se à lente
os defeitos alheios, nos próprios nem se sonha; vê-se o argueiro nos olhos do
vizinho, nos próprios não se enxerga a trave. Por este caminho chega muitas
vezes o orgulhoso, como o Fariseu, a desprezar os irmãos; outras, sem ir tão
longe rebaixa-os injustamente no próprio conceito, julgando-se melhor que eles,
quando na realidade lhes é inferior. Do mesmo princípio vem procurar dominar os
demais e fazer reconhecer a sua superioridade sobre eles.
c) Com relação aos
Superiores, traduz-se o orgulho pelo espírito de crítica e revolta, que leva a
espiar os seus mais pequeninos gestos ou passos, para os censurar: quer-se
julgar, sentenciar de tudo. Deste modo se torna muito mais difícil a
obediência; sente-se enorme dificuldade em acatar a sua autoridade e decisões,
em pedir-lhes as licenças necessárias; aspira-se à independência, isto é, em
última análise, a ser seu primeiro princípio.
825. 2.º A segunda
forma do orgulho consiste em se considerar um a si mesmo explícita ou
implicitamente como seu último fim, fazendo as próprias ações sem as referir a
Deus e desejando ser louvado, como se elas fossem completamente suas. Este
defeito deriva do primeiro; pois, quem se considera como seu primeiro
princípio, quer ser também seu último fim. Aqui seria mister renovar as
distinções já feitas.
A) Explicitamente,
pouquíssimos são os que se consideram seu último fim, exceto os ateus e os
incrédulos.
B) Muitos são,
porém, os que procedem na prática, como se estivessem imbuídos desse erro.
a) Querem ser
louvados, cumprimentados pelas suas boas obras, como se fossem os seus autores
principais e tivessem o direito de proceder por sua conta, para satisfação da
própria vaidade. Em lugar de referirem tudo a Deus, entendem antes que devem
receber felicitações pelos seus pretensos triunfos, como se tivessem direito a
toda a honra que daí provém.
b) Procedem por
egoísmo, pelos próprios interesses, dando-se-lhes muito pouco da glória de
Deus, e ainda menos do bem do próximo. E assim, vão até o excesso de imaginar
praticamente que os outros devem organizar a sua vida para lhes agradarem e
prestarem serviço; fazem-se assim centro e, a bem dizer, fim dos demais. Não
será isto usurpar inconscientemente os direitos de Deus?
c) Sem irem tão
longe, há pessoas piedosas, que se buscam a si mesmas, se queixam de Deus,
quando Ele as não inunda de consolações, se desalentam, quando se vêem na
aridez, e imaginam assim falsamente que o fim da piedade é gozar das
consolações, sendo que em realidade a glória de Deus deve ser o nosso fim
supremo em todas as ações, mas sobretudo na oração e nos exercícios
espirituais.
826. É, pois,
forçoso confessar que o orgulho, sob uma ou outra forma, é defeito muito comum,
até mesmo entre as pessoas que se dão à perfeição, defeito que nos segue
através de todas as fases da vida espiritual e que só conosco morrerá. Os
principiantes quase nem sequer dão por ele, porque não se estudam assaz
profundamente. Importa chamar-lhes a atenção para este ponto, indicar-lhes as
formas mais ordinárias deste defeito, para as tomarem por matéria do exame
particular.
[1] Sl 13,1.-
2- Tr. de la Concupiscense, ch XI