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quinta-feira, 5 de junho de 2014

A liturgia tradicional ilumina nossos tempos mutáveis com sua beleza e sua grandeza imutáveis



KLAUS GAMBER
“A INTREPIDEZ DE UMA VERDADEIRA TESTEMUNHA”
(POR CARDEAL RATZINGER
Bento XVI)
 
Klaus Gamber
Dizia-me há pouco um jovem sacerdote: “Hoje precisamos de um novo movimento litúrgico”. É a expressão de uma preocupação que somente um espírito voluntariamente superficial poderia hoje desprezar. O que preocupava este sacerdote não era a conquista de novas e audazes liberdades: que liberdade não se tomou ainda? Sentia a necessidade de um novo renascer partindo do mais íntimo da liturgia, como o havia desejado o movimento litúrgico quando estava no apogeu de sua verdadeira natureza, quando não se tratava de fabricar textos ou de inventar ações e formas, mas de descobrir o centro vivo, de penetrar no tecido da liturgia propriamente dita, para que seu cumprimento saísse de sua própria substância. A reforma litúrgica, em sua realização concreta, se distanciou demais desta origem. O resultado não foi uma reanimação, mas uma devastação. De um lado, tem-se a liturgia que se degenerou em “show”, onde se quis mostrar uma religião atrativa com a ajuda de tolices da moda e de incitantes princípios morais, com êxitos momentâneos no grupo de criadores litúrgicos e uma atitude de reprovação tanto mais pronunciada nos que buscam na Liturgia, não tanto o “showmaster” espiritual, mas o encontro com o Deus vivo, diante do qual toda “ação” é insignificante, pois somente este encontro é capaz de nos fazer chegar à verdadeira riqueza do ser. De outro lado, existe uma conservação de formas rituais cuja grandeza sempre impressiona, porém que levada ao extremo cristaliza num isolamento de opinião, que ao final só se torna tristeza. Certamente ficam entre os dois todos os sacerdotes e seus paroquianos que celebram a nova liturgia com solenidade; mas que se sentem inquietos pelas contradições existentes entre os dois extremos; e a falta de unidade interna da Igreja faz com que esta fidelidade apareça, aos olhos de muitos, como uma simples variedade pessoal de neoconservadorismo. Uma vez que isto acontece, necessitamos de um novo impulso espiritual para que a liturgia seja de novo uma atividade comunitária da Igreja e seja arrancada da arbitrariedade dos padres e de suas equipes de liturgia.

Não se pode “fabricar” um movimento litúrgico desta classe, como não se pode “fabricar” algo vivo. Todavia, pode-se contribuir com o seu desenvolvimento, esforçando-se em assimilar o novo espírito da liturgia e defendendo publicamente o que assim se recebeu. Este novo ponto de partida precisa de “padres” que sejam modelos e que não se contentem  com indicar o caminho a seguir. Os que hoje buscam tais “padres” encontrarão sem dúvida na pessoa de Monsenhor Klaus Gamber, que desgraçadamente nos deixou rápido, porém precisamente, ao nos deixar se fez verdadeiramente presente a nós, em toda a força das perspectivas que nos abriu. Justamente porque ao partir escapa das discussões partidistas, poderá, nesta hora de desolação, converter-se em “padre” de uma nova caminhada. Gamber trouxe, com todo o seu coração, a esperança do antigo movimento litúrgico. Sem dúvida, porque vinha de uma escola estrangeira, permaneceu como um “outsider”1 no cenário alemão, onde verdadeiramente não o queriam admitir; recentemente uma tese encontrou dificuldades importantes porque um jovem pesquisador ousou citar repetidamente a Gamber com demasiada benevolência. Pode ser, contudo, que este rechaço tenha sido providencial, porque forçou Gamber a seguir seu próprio caminho, evitando-lhe a carga do conformismo.

 É difícil expressar em poucas palavras, dentro da disputa entre liturgistas, o que verdadeiramente é essencial e o que não o é. Talvez a seguinte indicação possa ser útil. J. A. Jungman, um dos liturgistas verdadeiramente grandes de nosso século, havia definido em seu tempo a liturgia, tal como se entendia no Ocidente, baseando-se em investigações históricas, como uma "liturgia fruto de um desenvolvimento"; provavelmente em contraste com a noção oriental, que não vê na liturgia o devir e o crescimento histórico, mas apenas o reflexo da eterna liturgia, na qual a luz, através do desenrolar da ação sagrada 2, ilumina nossos tempos mutáveis com sua beleza e sua grandeza imutáveis. O que ocorreu após o Concílio é algo completamente distinto: no lugar de uma liturgia fruto de um desenvolvimento contínuo, introduziu-se uma liturgia fabricada. Escapou-se de um processo de crescimento e de devir para entrar em outro de fabricação. Não se quis continuar o devir e o amadurecimento orgânico do que existiu durante séculos. Foi substituído, como se fosse uma produção industrial, por uma fabricação que é um produto banal do momento. Gamber, com a vigilância de um autêntico vidente e com a intrepidez de uma verdadeira testemunha, se opôs a esta falsificação e nos ensinou incansavelmente a plenitude viva de uma verdadeira liturgia, graças a seu conhecimento incrivelmente rico das fontes; ele mesmo, que conhecia e amava a história, nos ensinou as múltiplas formas do devir e do caminho da liturgia; ele mesmo, que via a história desde dentro, viu neste desenvolvimento e nos seus frutos o reflexo intangível da liturgia eterna, que não é objeto do nosso fazer, mas que pode continuar maravilhosamente amadurecendo e se expandindo, se nos unimos intimamente a seu mistério. A morte deste homem e sacerdote eminente deveria nos estimular; sua obra poderia nos ajudar a tornar um novo impulso.

1  NT. Estranho, intruso.
2  NT. O texto espanhol traz a través del desarrollo sagrado.


Joseph Cardeal Ratzinger
Bento XVI

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