KLAUS GAMBER
“A INTREPIDEZ DE UMA VERDADEIRA TESTEMUNHA”
(POR CARDEAL RATZINGER
Bento XVI)
Klaus Gamber |
Dizia-me há pouco um jovem sacerdote: “Hoje precisamos de um
novo movimento litúrgico”. É a expressão de uma preocupação que somente um
espírito voluntariamente superficial poderia hoje desprezar. O que preocupava
este sacerdote não era a conquista de novas e audazes liberdades: que liberdade
não se tomou ainda? Sentia a necessidade de um novo renascer partindo do mais
íntimo da liturgia, como o havia desejado o movimento litúrgico quando estava
no apogeu de sua verdadeira natureza, quando não se tratava de fabricar textos
ou de inventar ações e formas, mas de descobrir o centro vivo, de penetrar no
tecido da liturgia propriamente dita, para que seu cumprimento saísse de sua
própria substância. A reforma litúrgica, em sua realização concreta, se
distanciou demais desta origem. O resultado não foi uma reanimação, mas uma
devastação. De um lado, tem-se a liturgia que se degenerou em “show”, onde se
quis mostrar uma religião atrativa com a ajuda de tolices da moda e de
incitantes princípios morais, com êxitos momentâneos no grupo de criadores
litúrgicos e uma atitude de reprovação tanto mais pronunciada nos que buscam na
Liturgia, não tanto o “showmaster” espiritual, mas o encontro com o Deus
vivo, diante do qual toda “ação” é insignificante, pois somente este encontro é
capaz de nos fazer chegar à verdadeira riqueza do ser. De outro lado, existe
uma conservação de formas rituais cuja grandeza sempre impressiona, porém que
levada ao extremo cristaliza num isolamento de opinião, que ao final só se
torna tristeza. Certamente ficam entre os dois todos os sacerdotes e seus
paroquianos que celebram a nova liturgia com solenidade; mas que se sentem inquietos
pelas contradições existentes entre os dois extremos; e a falta de unidade
interna da Igreja faz com que esta fidelidade apareça, aos olhos de muitos,
como uma simples variedade pessoal de neoconservadorismo. Uma vez que isto
acontece, necessitamos de um novo impulso espiritual para que a liturgia seja
de novo uma atividade comunitária da Igreja e seja arrancada da arbitrariedade
dos padres e de suas equipes de liturgia.
Não se pode “fabricar” um movimento litúrgico desta classe,
como não se pode “fabricar” algo vivo. Todavia, pode-se contribuir com o seu
desenvolvimento, esforçando-se em assimilar o novo espírito da liturgia e
defendendo publicamente o que assim se recebeu. Este novo ponto de partida
precisa de “padres” que sejam modelos e que não se contentem com indicar o caminho a seguir. Os que hoje
buscam tais “padres” encontrarão sem dúvida na pessoa de Monsenhor Klaus
Gamber, que desgraçadamente nos deixou rápido, porém precisamente, ao nos
deixar se fez verdadeiramente presente a nós, em toda a força das perspectivas
que nos abriu. Justamente porque ao partir escapa das discussões partidistas,
poderá, nesta hora de desolação, converter-se em “padre” de uma nova caminhada.
Gamber trouxe, com todo o seu coração, a esperança do antigo movimento
litúrgico. Sem dúvida, porque vinha de uma escola estrangeira, permaneceu como
um “outsider”1 no cenário alemão, onde verdadeiramente não o queriam
admitir; recentemente uma tese encontrou dificuldades importantes porque um
jovem pesquisador ousou citar repetidamente a Gamber com demasiada
benevolência. Pode ser, contudo, que este rechaço tenha sido providencial,
porque forçou Gamber a seguir seu próprio caminho, evitando-lhe a carga do
conformismo.
É difícil expressar
em poucas palavras, dentro da disputa entre liturgistas, o que verdadeiramente
é essencial e o que não o é. Talvez a seguinte indicação possa ser útil. J. A.
Jungman, um dos liturgistas verdadeiramente grandes de nosso século, havia
definido em seu tempo a liturgia, tal como se entendia no Ocidente, baseando-se
em investigações históricas, como uma "liturgia fruto de um
desenvolvimento"; provavelmente em contraste com a noção oriental, que não
vê na liturgia o devir e o crescimento histórico, mas apenas o reflexo da
eterna liturgia, na qual a luz, através do desenrolar da ação sagrada 2,
ilumina nossos tempos mutáveis com sua beleza e sua grandeza imutáveis. O que
ocorreu após o Concílio é algo completamente distinto: no lugar de uma liturgia
fruto de um desenvolvimento contínuo, introduziu-se uma liturgia fabricada.
Escapou-se de um processo de crescimento e de devir para entrar em outro de
fabricação. Não se quis continuar o devir e o amadurecimento orgânico do que
existiu durante séculos. Foi substituído, como se fosse uma produção
industrial, por uma fabricação que é um produto banal do momento. Gamber, com a
vigilância de um autêntico vidente e com a intrepidez de uma verdadeira
testemunha, se opôs a esta falsificação e nos ensinou incansavelmente a
plenitude viva de uma verdadeira liturgia, graças a seu conhecimento
incrivelmente rico das fontes; ele mesmo, que conhecia e amava a história, nos
ensinou as múltiplas formas do devir e do caminho da liturgia; ele mesmo, que
via a história desde dentro, viu neste desenvolvimento e nos seus frutos o
reflexo intangível da liturgia eterna, que não é objeto do nosso fazer, mas que
pode continuar maravilhosamente amadurecendo e se expandindo, se nos unimos
intimamente a seu mistério. A morte deste homem e sacerdote eminente deveria
nos estimular; sua obra poderia nos ajudar a tornar um novo impulso.
1 NT. Estranho,
intruso.
2 NT. O texto
espanhol traz a través del desarrollo sagrado.
Joseph
Cardeal Ratzinger
Bento
XVI
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