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terça-feira, 1 de outubro de 2013

Cardeal Ratzinger, então Papa Emérito Bento XVI, sobre a nova liturgia de Paulo VI


“O segundo grande acontecimento no início dos meus anos em Ratisbona foi apublicação do missal de Paulo VI com a proibição quase total do missal anterior, depois de uma fase de transição de apenas meio ano. Era auspicioso o fato de que, depois de um tempo de experimentos, muitas vezes deformando profundamente a liturgia, houvesse agora um texto litúrgico obrigatório. Mas fiquei consternado pela proibição do Missal antigo, pois algo semelhante nunca tinha acontecido em toda a história da liturgia. Tinha-se a impressão de que isso era uma coisa perfeitamente normal. O missal anterior tinha sido criado por Pio V, por ocasião de Concílio Tridentino; assim era normal, dizia-se, que após 400 anos e depois de um novo Concílio um novo Papa oferece-se um novo missal. Mas a verdade histórica é outra. Pio V havia mandado fazer apenas uma revisão do Missale Romanum existente, como é normal no crescimento vivo da história através dos séculos. Assim também muitos de seus sucessores tinham novamente trabalhado esse missal, sem jamais opor um missal novo ao missal anterior. Foi um processo contínuo de crescimento e purificação, no qual, porém, nunca se destruiu a continuidade. Não existe um missa de Pio V que tivesse sido criada por ele. O que existe é a revisão feita por Pio V, como fase de uma longa história de crescimento. O “novo” depois do Concílio de Trento foi de outra natureza: o rompimento causado pela Reforma tinha-se realizado, sobretudo, como “reformas” litúrgicas. Não havia simplesmente uma Igreja Católica e outra protestante, uma ao lado da outra; a divisão da Igreja realizou-se quase imperceptivelmente, e era mais visível e historicamente mais eficaz na mudança da liturgia, que ainda aconteceu com muita diferença entre um lugar e outro, de sorte que também aí, entre o ainda católico e o já não católico muitas vezes era impossível de discernir.

Naquela situação confusa, que se tornara possível pela falta de uma legislação litúrgica única e pela existência de um pluralismo litúrgico na Idade Média, o papa decidiu que o Missale Romanum, o livro das missas na cidade de Roma, tinha de ser introduzido em toda parte onde não se pudessem alegar liturgias que tivessem pelo menos 200 anos de idade. Onde isso fosse o caso, podia-se ficar com a liturgia existente, porque então o seu caráter católico podia ser considerado seguro. Não se tratava, pois, de uma proibição de um missal existente e até então considerado válido. Porém, a proibição agora decretada, do missal que se tinha desenvolvido continuamente através de todos os séculos, desde os manuais para os sacramentos na Igreja antiga, causou na história da liturgia uma ruptura cujas conseqüências só podiam ser trágicas. Uma revisão do missal, como já houvera muitas vezes, e que desta vez podia ser mais radical do que até então, sobretudo pela introdução da língua materna, tinha sentido e tinha sido determinada com razão pelo Concílio. Mas agora aconteceu mais: o edifico antigo foi derrubado e construiu-se um outro. É verdade que, em grande parte, foi feito com o material do anterior e usando-se, também, os projetos antigos. E não há dúvida: este novo missal trouxe, sob muitos aspectos, um verdadeiro melhoramento e enriquecimento. Mas o fato de ter sido apresentado como construção nova, em oposição ao crescimento histórico, e de o missal antigo ter sido proibido, de sorte que a liturgia não apareceu mais como resultado de um crescimento vivo, e sim como produto de um trabalho erudito e de competência juridical, isso nos prejudicou sobremaneira. Pois agora se devia ter a impressão de que liturgia é algo que “se faz”; não algo preexistente, mas algo que depende de nossas decisões. E aí seria lógico, também, que não somente os eruditos nem somente uma autoridade central fossem reconhecidas como portadores da decisão, mas que, afinal, toda a “comunidade” quisesse adotar sua própria liturgia. Mas quando a liturgia é algo feito por nós mesmos, então ela deixa de nos oferecer o que deveria ser sua verdadeira dádiva: o encontro com o mistério, que não é produto nosso, mas nossa origem e fonte de nossa vida. Uma renovação da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica que reconheça novamente a unidade da história da liturgia e que entenda o Vaticano II não como ruptura, mas como degrau na evolução, é urgentemente necessária para a vida da Igreja. Estou convencido de que a crise na Igreja, pela qual passamos hoje, é causada em grande parte pela decadência da liturgia, que às vezes é concebida de uma maneira etsi Deus non daretur [Como se Deus não existisse], isto é, que nela não importa mais se Deus existe e se Ele nos fala e nos escuta. Quando, porém, na liturgia não aparece mais a comunhão da fé, a unidade mundial da Igreja, o mistério de Cristo vivo, onde, então, ainda aparece Igreja, em sua essência espiritual? Aí a comunidade ainda celebra somente a si mesma, mas isso não vale a pena. E já que a comunidade por si só nem existe, e é sempre formada somente pela fé, sendo criada como unidade pelo Senhor, é inevitável, naquela suposição, que a Igreja se divida em partidos de todo tipo, e os grupos se oponham uns aos outros dentro de uma Igreja que se dilacera a si mesma. Por isso precisamos de um novo movimento litúrgico, que dê vida à verdadeira herança do Concílio Vaticano II”

(Cardeal Joseph Ratzinger, Papa Bento XVI, Lembranças da Minha Vida, versão em português, Ed Paulinas, São Paulo, 2006, pp.128-131)

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